Haile

Fotos: Claudio Pacheco/RJ

Domingo de sol no Rio de Janeiro. Faltando uma semana para o Carnaval, o cenário é um só: milhares de foliões fantasiados indo de um lado a outro da cidade, cada um para seu bloco preferido. Mas, na Lagoa Rodrigo de Freitas, um grupo diferente estava concentrado. A fantasia? Uma só, de corredor. Para quem estava ali, o rei não era Momo, era um cara que, aposentado oficialmente em 2015, poderia ser chamado de “o Pelé da corrida de longa distância”. Seu nome: Haile Gebrselassie.

O que dizer de alguém que teve, durante a carreira, 27 recordes mundiais, nas mais diversas provas de fundo? Nove vezes campeão mundial. Bicampeão olímpico dos 10.000m rasos. Primeiro a correr uma maratona abaixo de 2:04, em 2008. Melhor ouvir e observar, certo? O evento, organizado pela Adidas na sua Runbase do Rio de Janeiro tinha como meta, segundo a própria marca, proporcionar aos mortais a possibilidade de treinar ao lado da lenda, tirar fotos, levar um autógrafo para casa. E colecionar sorrisos.

Haile chegou, dançou e falou para uma platéia já convertida por sua absurda simpatia. O principal? O valor do exercício. A importância do suor na nossa rotina. Como um messias, ele proclamou que, para o homem de hoje, preso às comodidades da vida moderna, a atividade física leva à salvação. E ele, como tive a oportunidade de confirmar um pouco mais tarde, ao entrevistá-lo, segue à risca a cartilha.

Um exemplo da simpatia o grande Haile, em vídeo feito pela nossa cinegrafista amadora, Patricia Julianelli, que cobriu o evento em São Paulo.

O treino foi em volta da Lagoa, 7,5 Km divididos em 3 velocidades: rápida, muito rápida e impossível. Teve quem acompanhou ao menos um trecho e, ao final, ao sentir o tendão de Aquiles, o mestre ainda foi gentil com um dos corredores, deixando-o passar. Ou, melhor, estimulando-o, o que é totalmente natural para ele. Ao seu lado, é muito fácil encontrar motivação para correr. “Você tem que relaxar e curtir sempre, disse ele. Final do treino, alongamentos, um trato na perna e fotos com a galera. Mais sorrisos, muitos.

Olhando o rosto das pessoas que saíam do evento, consegui perceber mais ainda a grandiosidade do homem. De forma muito simples, ele é capaz de tocar profundamente a todos que pertençam, ainda que há pouco tempo, ao universo da corrida. Ao entrar em contato com “O Imperador”, como ele é conhecido, todos se sentem parte de algo maior. Não são súditos, mas parceiros eternos no planeta corrida.

Depois das fotos, finalmente, chegou a hora de entrevistá-lo. A fala é franca, num inglês às vezes um pouco vacilante mas Haile se mostra por inteiro. Sorri, gesticula e surpreende em alguns momentos, quando solta de repente uma exclamação parecida com o grito de uma criança ao receber um presente muito desejado. E te deixa sempre à vontade, como se estivéssemos tomando um café na sua casa.

Comecei citando uma de suas falas mais conhecidas. Segundo ele, “um dia sem correr é como um dia sem comer. Não é um bom dia”. Ao responder se ainda se sente dessa maneira, ele não vacilou: “quando não consigo correr na floresta, vou à academia e pedalo. Meu corpo, simplesmente, precisa suar. Não consigo nem comer direito, parece que meu organismo não digere o alimento corretamente. É como um vício, se você me entende”.

Quando perguntei sobre quem venceria uma hipotética corrida entre os 3 grandes etíopes, Abebe Bikila, ele mesmo e Kenenisa Bekele, ele foi categórico, em meio a sorrisos: “se tivéssemos que correr descalços, certamente Bikila”. Aliás, ao falar do grande ídolo, afirmou que “nada aconteceria se não fosse ele. Foi Bikila quem abriu as portas e nos mostrou o caminho. Pensei, se ele pode, quem sabe eu também não consiga… e o resto é história”. A vitória de Bikila nas Olimpíadas de Roma em 1960 é considerada por muita gente boa como a maior de todos os tempos. Conta a história que ele foi enviado de última hora e não se adaptou aos tênis disponíveis, resolvendo assim correr descalço. Aliás, em 1964, em Tóquio, foi bicampeão… calçado, por exigência dos organizadores da prova!

Conversamos sobre a próxima final olímpica dos 10.000m, no Brasil. Após quebrar um domínio etíope que vinha desde 1996, quando o próprio Haile venceu a prova, Mo Farah é, segundo ele, favorito para mais um ouro, por estar em grande forma e mais experiente agora. Mas ele não descarta outros competidores, principalmente da Etiópia e do Quênia: “tem muita gente boa no páreo e acho que o resultado está muito aberto. Aliás, se não fosse assim, para que os outros iriam? (risos)”. Político, educado, mas deu o recado certo. E avisa: “estarei aqui para os jogos”. Afinal de contas, são caras como ele que fazem a competição ser tão especial. Dentro e fora das pistas.

Aproveitando o tema, lembrei que em 2016 fazem 20 anos que ele conquistou seu primeiro ouro e lhe perguntei se faria algo especial para comemorar. Surpreso, disse que não havia pensado em nada e deixa transparecer uma ponta de emoção ao comentar o feito: “96 foi um marco. Estar lá entre os grandes e ganhar o meu tão sonhado outro olímpico. Foi a realização de um sonho”.

Ao responder sobre Paul Tergat, seu eterno rival nas pistas sobre o qual venceu a final dos 10.000m em Sidney num sprint final emocionante, conquistando o bicampeonato olímpico, Haile dá novamente mostras do seu caráter. “nós ainda nos encontramos, vamos a alguns eventos juntos. Não somos amigos próximos mas, mesmo quando competíamos, não existia ódio entre nós. Se um ganhava uma prova, o outro pensava ok, ele me ganhou hoje. Na próxima é a minha vez”. Para ele, o esporte aproxima, une. A luta existe apenas nas pistas, de acordo com as regras.

Sobre seu lado empresário, perguntei se ele ainda se sentia em débito com seu país e quais seus próximos planos – Haile é dono de, entre outros empreendimentos, uma plantação de café, principal produto do país, uma empresa de mineração e um hotel. Além disso, administra duas escolas, tudo em parceria com sua mulher, Alem e seu irmão. Ele se emociona e diz que emprega 1.700 pessoas e que usa sua experiência de 25 anos, enriquecida com viagens a mais de 100 países, para retribuir a seu país. Num momento mais delicado, disse: “se você me perguntar quantos etíopes teriam essa chance, eu não conseguiria te dar mais que 5, talvez 6 nomes. É essa experiência que quero compartilhar com meu povo. O atletismo me deu tudo e eu me sinto inclinado a entregar parte disso aos meus compatriotas. Se eu fosse o presidente do país, sabe-se lá o que poderia fazer, talvez mais, talvez não”. O cara realmente ama seu país. Emocionante.

Ainda deu tempo para conversar sobre sua participação como embaixador global do programa G4S 4teen, criado por uma seguradora de origem dinamarquesa, que visa auxiliar 14 jovens atletas carentes com grande potencial olímpico. Entre os países participantes, encontram-se Índia, Botswana, Nigéria, entre outros, além de, na América do Sul, Colômbia e Peru. Cada atleta pertence a um esporte diferente e recebe apoio para se dedicar integralmente à sua modalidade, além de ser acompanhado em todos os aspectos de sua vida. A função de Haile é servir de mentor para o grupo, o que faz com muito carinho.

Ao final do nosso papo, em meio a gargalhadas, fiquei sabendo que ele está de olho no Brasil: “como eu trabalho com café, minha grande meta agora, no mercado mundial, é ganhar do seu país, isso é maior que meus desafios como corredor”. E mais risadas.

Quando lhe apresentei a edição de janeiro/fevereiro da Runner’s, ele disse “a revista está em muitos países, não é?”. No que alguém, prontamente, completou: “são muitos corredores por aí”. Somos mesmo. Vida longa ao rei!