De campeão para campeões

UM FEITO MEMORÁVEL que nenhum brasileiro até hoje foi capaz de reproduzir no atletismo: em 1984, aos 21 anos, Joaquim Cruz vence o britânico Sebastian Coe, favorito nos 800m, com um recorde olímpico no Estádio de Los Angeles: 1min43.

Por trás do feito, como o próprio atleta conta, há uma história de superação e determinação retratada em Matador de Dragões, livro lançado em 2015. “Meus dragões eram internos, mentais. Quando me preparava para competir, criava um dragão maior que o desafio a ser encarado. Se eu conseguisse dominá-lo, o desafio seria menor. Sempre fui uma pessoa muito tensa, tive úlcera nervosa”, lembra Joaquim Cruz, revelando a ansiedade por trás da aparente placidez.

Trinta anos depois, o solitário ouro olímpico brasileiro revela também o que deixou de ser feito no esporte nacional. O hoje treinador vive em San Diego, na Califórnia (EUA), com a mulher e dois filhos. Responsável por uma equipe de paratletas nos Estados Unidos e também pelo instituto que leva seu nome, em Brasília, e que se dedica à formação de novos talentos, Joaquim Cruz conversou conosco sobre sua expectativa para os Jogos do Rio.

RW Como tem sido seu trabalho nos Estados Unidos?

JC Tenho nove atletas paralímpicos: dois cadeirantes, quatro cegos, dois com paralisia cerebral e um amputado, além de dois atletas olímpicos de meio fundo. Alguns vieram para mim no ano passado, então tem havido muito estresse em função do tempo, pois temos o paralímpico em junho e o Pan e o Parapan em agosto. Com o

Comitê Olímpico Americano, a questão não é ir ou não para as Olimpíadas, mas subir ao pódio. Isso é um dragão enorme. Minha dificuldade como reinador é convencer o atleta a ser atleta 24 horas por dia, e não apenas nas quatro horas em que está comigo. São as outras 20 horas do dia que farão dele um campeão.

RW Ainda há muita diferença entre as culturas de treinamento dos EUA e do Brasil?

JC Sim. Um dos meus esforços no Brasil é criar uma cultura de vencedor que, infelizmente, só temos no futebol. Perdemos feio na Copa, mas antes da derrota não se admitia o 2° lugar. No atletismo ninguém pensa assim. Precisamos mudar a mentalidade brasileira, que se alegra em somente participar de uma Olimpíada. É preciso preparar atletas para o pódio.

RW Como se cria esse espírito?

JC Temos que educar desde quem está liderando até quem está no entorno do processo. No centro olímpico, o cozinheiro sabe que o atleta está treinando para subir ao pódio. Todos estão envolvidos nessa cultura.


RW Quais as chances do Brasil na pista para os Jogos de 2016?

JC Após o Mundial de Pequim, em agosto, teremos uma ideia. O atleta que não chegar às finais praticamente não terá chance no Rio.

RW Como você vê a renovação de talentos no atletismo para os Jogos do Rio?

JC Não temos tido muitas revelações nos últimos anos, pois o investimento na base é deficiente. Nossa mina de talentos secou. Dependemos muito dos clubes pra desenvolver os atletas, mas quando eles chegam ao clube, já são semiprofissionais. E antes disso? Quem está formando esses meninos? Esse trabalho tem de ser feito na escola, como aconteceu comigo. Por isso desenvolvo projetos como o do instituto.

RW Como você avalia o peso de competir em casa?

JC Em Los Angeles [1984, na conquista do ouro] foi difícil, e eu me considerava em casa porque competia lá direto, e todos me conheciam pela universidade. Antes da prova, eu não pensava no Brasil. Sabia que a bandeira estava preparada, mas eu estava “desligado” disso e focado na prova. No Brasil, isso vai ser bem mais difícil. Não sei se a mídia e as próprias famílias vão dar sossego aos atletas, nem como a comunidade brasileira vai se comportar. Vai vencer quem tiver total controle emocional.

RW A consciência de ser um atleta mudou muito da sua geração para hoje?

JC Hoje temos mais condições e oportunidades, mas acho que falta ao atleta o espírito de aventura, de querer explorar seu potencial ao infinito. Vejo que muitos se julgam os melhores antes de alcançarem um resultado expressivo. Ganham uma prova de rua e acham que é o Pelé, que não precisam treinar tanto nem ir para os Estados Unidos ou Europa se aperfeiçoar.

RW As corridas de rua têm certa influência nisso, não?

JC Sim. O menino vem de uma trajetória humilde, entra na prova e ganha o prêmio em dinheiro. Participa de cinco provas e já dá para comprar um carro. Olimpíadas para quê? Por isso não temos atletas de meio fundo e fundo na pista.

RW Você ainda corre?

JC Tento correr todos os dias, mas sem obrigação. Não sigo planilhas, corro para poder comer. Depois da minha “aposentadoria” engordei apenas 7 kg. Já fiz provas de rua, de 5 km e 10 km, mas nunca quis encarar uma maratona. Se resolvesse encarar uma, seria para fazer abaixo de três horas. Então, prefiro minhas corridinhas diárias.