Das ruas para o pódio: conheça a história inacreditável de Ana Garcez

Ana Luiza Garcez, a ANIMAL, subiu mais uma vez ao pódio, aos 55 anos; veja quem é ela

Créditos: Reprodução/Instagram

Já ouviu falar de Ana Garcez, a ANIMAL? Nenhum corredor no mundo conhece as ruas como ela.

Isso porque a atleta passou quase 20 anos vivendo nelas. E, mesmo assim, conseguiu se tornar uma fera das corridas de rua.

Recentemente, Ana, de 55 anos se consagrou campeã duas vezes no Gay Games de Paris, o maior evento esportivo LGBT do mundo.

Levou a primeira medalha de ouro do Brasil nos  10K, com um tempo de 40min57. E também no 5K, com um tempo de 20m16, com subida e debaixo de chuva.

Quem é Ana Luiza Garcez, a Animal?

Por Julia Zanolli e Maurício Barros

Se não tivesse seu físico violentado pelo álcool, pelas drogas, pela desgraça? Se alguém tivesse descoberto seu talento para a corrida mais cedo, até onde teria ido Ana Luiza Garcez?

Perguntamos isso então a seu treinador, Wanderlei de Oliveira: “Seria uma atleta de nível internacional. Se com tudo isso ela corre do jeito que corre, imagina se tivesse treinado direito”, diz ele.

Ana só começou a correr aos 36 anos. E hoje, aos 55, é capaz de vencer provas difíceis entre veteranos e estar entre as melhores corredoras mesmo na categoria geral.

Com 1,52 m de altura e 44 kg, Ana é uma força da natureza. Nesta reportagem de 2009, encontramos a Animal, como ela é conhecida, várias vezes.

A velocidade e a lógica caótica com que narra os fatos de sua vida deixam o interlocutor meio tonto. Por isso, é preciso repetir perguntas, questionar datas, nomes, histórias.

Momentos marcantes da vida

Mesmo assim, fica a dúvida se todas as coisas que ela diz que viveu de fato aconteceram, ou se só ocorreram em seus pensamentos, muitas vezes turbinados pelo sofrimento e pelo alento químico.

Como saber? É preciso conversar um bom tempo com Ana para descobrir que tipo de Animal está na nossa frente.

Com seu jeito de rapper inquieto, ela se levanta e gesticula, para narrar com sangue nos olhos o momento em que reencontrou, já adulta, a mãe que ela diz tê-la abandonado quando era bebê.

“Não quero te ver na minha frente, você não é minha mãe coisa nenhuma”, diz, apontando o indicador para um interlocutor imaginário.

Mas, em dois momentos, uma outra figura aparece na frente dos repórteres da RUNNER’S WORLD.

No primeiro, quando se lembra da última viagem que fez a Miami, no início do ano. Ela conta que viu um mendigo na rua revirando o lixo e decidiu dar-lhe o sanduíche que comia. Ele recusou.

“Mendigo é assim: tem medo de que a comida que estão dando seja envenenada. Prefere pegar do lixo.” Imediatamente Ana desaba em um choro surdo, que cobre com as mãos para não mostrar.

O outro momento acontece quando fala de Celso. “Ele era loiro, lindo”, diz, sobre o travesti dono de uma boate no centro de São Paulo que, segundo ela, a ajudou muito.

“Ele cuidava de mim”, garante. Ana conta que viveu um tempo na casa de Celso, na Bahia, para onde ele foi quando disse estar com aids. “Fui junto para ajudar.”

Após sua morte, Ana voltou às ruas de São Paulo. Perguntamos se o sentimento que ela tinha por Celso pode ser chamado de amor. Ela responde que sim. E se esconde, de novo, para chorar.

Incentivo e inspiração na corrida

Créditos: Renato Pizzutto

“Levanta esses braços! Corrige essa postura!”. A policial obedece de imediato às ordens ditas aos berros por quem ali tem autoridade de coronel. Outras três PMs também ouvem os comandos: “Força! Respira! Já tá chegando!”

A dona da voz é a Ana, que auxilia o técnico Wanderlei de Oliveira, da assessoria Run for Life, no treinamento das quatro policiais na pista do Complexo Esportivo Constâncio Vaz Guimarães, em São Paulo.

As tenentes Ana Maria Adriano, Patrícia dos Santos e Maria Aparecida Moraes e a soldado Luciana Adriano querem correr a São Silvestre no último dia do ano.

Por isso estão ali, naquela noite congelante de julho, iniciando a longa preparação. Pelo que suam para completar o teste de 3 000 metros que avalia a condição de cada uma, vão precisar de muito mais que os incentivos da Animal para não fraquejar.

Mas se o que lhes faltava era puramente inspiração, escolheram o lugar certo — o lugar onde podem ver, ouvir e receber o apoio de Ana.

Conquistas de Ana Garcez

Não é exagero dizer que Ana, 55  anos, é o mais notável personagem do universo de corridas de rua do Brasil.

Ao longo da tardia e curta carreira de corredora, Ana Garcez acumula resultados expressivos.

Na categoria máster (a partir de 40 anos), é recordista brasileira nos 800, 1 500 e 5 000 metros.

Também foi campeã de sua categoria na São Silvestre de 2003 e vice-campeã geral da Meia Maratona de Buenos Aires (Argentina) em 2004, com seu melhor tempo nos 21 km: 1h22.

Além disso, foi a campeã geral da Meia Maratona de Santiago, no Chile, em 2006. Em 2007 Ana correu pela primeira vez a Meia Maratona da Disney e acabou deixando o título de campeã másterescapar pouco depois da entrada no parque Magic Kingdom.

Seus treinadores contam que a Animal ficou emocionada ao ver os personagens dos desenhos e demorou um pouco a voltar ao ritmo.

Mas, mesmo assim, foi campeã da sua categoria. Outras façanhas são a conquista de duas meias maratonas em 2009, a da Disney e a de Miami, ambas nos Estados Unidos, na categoria máster.

Isso com apenas 15 dias de descanso entre as provas. Em Miami, ela ainda foi a quarta colocada na categoria geral. Tudo bem, você poderia fazer uma lista de atletas brasileiros que têm no currículo glórias mais significativas que essas.

Vida nas ruas

Mas as conquistas de Ana ganham tons dourados quando consideramos que ela viveu até os 18 anos em uma instituição administrada pela antiga Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor).

E que depois passou mais cerca de 18 anos nas ruas de São Paulo mantendo o que se pode chamar de “sobrevida” — vagueando pelo centro da cidade sob efeito de álcool e, como ela diz, “todas as drogas que você pode imaginar, já que eu tomava de tudo”.

Ana afirma que durante esse período roubou, apanhou da polícia, sofreu tentativas de estupro. Mas sobreviveu. E graças à corrida.

Ao lembrar-se então do que passou, Ana se levanta, gesticula, interpreta as falas. Sua voz tem um tom grave. É desse modo que ela narra sua história, que começa quando foi abandonada pela mãe ainda bebê.

Isso a levou, ao lado da irmã, a viver como interna na instituição de menores até atingir a maioridade.

Ao sair, foi trabalhar na casa de uma família no Morumbi como empregada doméstica. Ela afirma que não recebia o salário e que trabalhava em troca de comida e teto.

“Parece que eu ouvia uma voz falando para eu roubar”, afirma. Ana acabou cedendo à voz e diz que, um dia, encheu três malas com coisas da patroa e fugiu.

Dessa forma, foi parar na praça da República, no centro de São Paulo. O ano era 1980. Lá conheceu os meninos de rua que virariam sua família.

E o ingresso no grupo foi a distribuição dos bens surrupiados do antigo emprego. Ana conta que foi nessa época que começou a usar drogas e a praticar pequenos furtos.

E assim viveria por mais duas décadas. Dos amigos de rua ganhou o apelido de “Animal” que a acompanha até hoje.

Quando a corrida entrou em sua vida

Créditos: Renato Pizzutto

Ao parar em frente a uma televisão na vitrine de uma loja de eletrodomésticos, assistiu a trechos do filme Carruagens de Fogo, clássico que narra a saga de dois corredores ingleses que lutam para atingir a glória nos Jogos Olímpicos de 1924.

“É isso o que eu quero fazer: correr, pensei”, diz Ana. “Até porque não seria nenhuma novidade para alguém que corre da polícia”, comenta, com ironia.

Ela revelou o desejo a seus amigos de rua. Um deles, em tom de deboche, a desafiou a correr a Maratona de São Paulo, que ocorreria dali uns dias. Ana topou.

Não sabe dizer exatamente o ano dessa Maratona de São Paulo, assim como não consegue precisar outras datas de sua vida.

Mas conta que não conhecia a distância de uma maratona e aceitou o desafio. “Os meninos me ajudaram a roubar roupas e o tênis para correr”, diz.

Sem qualquer preparação, “além de um saco de cola de sapateiro no bolso”, garante que completou os 42 quilômetros e provou ao amigo que era capaz. A corrida entrava então oficialmente na sua vida.

Depois de terminar a maratona “sabe lá Deus como”, Ana diz ter percebido que precisaria de ajuda se quisesse correr de verdade.

Corredora diferenciada

“Em 1998 procurei um posto de saúde dizendo que achava que tinha aids, aí me mandaram fazer exames no Hospital das Clínicas”, diz.

No HC ela foi encaminhada ao fisiologista Carlos Eduardo Negrão. Ele conta que mediu o índice de VO2 de Ana e detectou que ela tinha uma capacidade alta de absorção de oxigênio.

“É um caso marcante, não é corriqueiro. Mas ela já sabia que tinha potencial para correr, e nós só confirmamos isso”, diz o fisiologista.

Sem técnico nem técnica, ela voltou às ruas e foi aprendendo a correr. Seus treinadores garantem que hoje em dia, apesar de correr sem relógio, Ana tem uma noção de ritmo impressionante.

“Mesmo nas provas em que a distância é contada em milhas, ela mantêm o passo e faz o tempo combinado, cravado”, diz Wanderlei de Oliveira.

Com o diagnóstico “corredora em potencial” nas mãos, Ana passou a tentar participar de algumas provas por conta própria.

De moradora de rua à atleta

Créditos: Renato Pizzutto

Em 1998 a televisão que a havia inspirado a correr entrou em cena de novo. E a tirou das ruas.

Ana apareceu em uma reportagem no programa do Gugu, no SBT, sobre moradores de rua, onde revelava sua paixão pelas corridas.

O então secretário municipal de esportes de São Paulo, Fausto Camunha, viu o programa e pediu que seus assessores a encontrassem.

“No dia seguinte ela apareceu no meu escritório. Estava desconfiada”, afirma Camunha.

“Falei que ela merecia respeito como qualquer outra pessoa. Até então ela não acreditava nisso.”

Camunha a convidou para morar no Centro Olímpico da prefeitura de São Paulo e virou pessoa decisiva na sua recuperação.

Por isso, para Ana, é o que mais se aproxima de uma figura paterna. Até hoje se falam com frequência.

“Enquanto eu for vivo, vou estar sempre por perto dela”, diz Camunha. No Centro Olímpico Ana teve acesso a toda infraestrutura de que precisava, com o apoio de profissionais como nutricionista, assistente social, fisioterapeuta e dentista.

Atleta de verdade

Créditos: Renato Pizzutto

A partir de então, o que era apenas potencial passou a ser realidade. Ana deixou as drogas e virou atleta. “Gostaria de ter ajudado outros como ela”, diz Camunha.

Em 2000 Ana passou a morar no Ginásio do Ibirapuera, onde vive até hoje. O técnico Wanderlei de Oliveira (foto acima), um dos fundadores do Pão de Açúcar Club — um dos grupos de corrida pioneiros de São Paulo —, dava treinos no mesmo local.

Ele diz que, no início, não queria treinar a ex-menina de rua de temperamento forte. Mas, a pedido de Camunha, o então governador Mário Covas intercedeu e Oliveira aceitou ser o técnico de Ana.

Desde então Ana vive em um quarto no setor de alojamentos do Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, no Ibirapuera.

Recebe o auxílio de restaurantes da região para suas refeições. Sua rotina é correr e ajudar quem quer correr.

Ela acorda as 5 da manhã e treina até as 20h, na própria pista de atletismo, no Parque do Ibirapuera ou nas ruas da cidade.

Treina de manhã e à tarde. De noite, ajuda a equipe da Run for Life nos treinos. É convidada para contar sua história em eventos ligados às corridas e ganha uns trocados por isso de vez em quando.

E para auxiliar de treinamento ela parece perfeita. Ama a corrida, demonstra isso para os alunos. Nem precisaria gritar ao lado da pista. Sua presença, e a presença de sua história, já são uma inspiração.

 

*Atenção: conteúdo publicado na edição de agosto de 2009 da revista impressa da Runner’s World Brasil

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