Após perder a visão, Alexandre fez da corrida seu porto seguro

Por Daniela Fescina

Alexandre aparece sentado, sorrindo, com a sua roupa de corrida
Foto: Ricardo Jaeger/Runner's World Brasil

Era 1993 e o ano letivo começaria dali a poucas semanas. Como toda a garotada, Alexandre Rosa, então com 13 anos, estava empolgado. Mas, no caso dele, a expectativa era finalmente retornar às quadras. No entanto, após perder a visão, Alexandre fez da corrida o seu porto seguro.

Alexandre adorava praticar esportes – jogava bola muito bem e, como milhares de crianças do “país do futebol”, sonhava em se tornar profissional. Mal sabia que teria pela frente um grande obstáculo para driblar.

Por causa de uma atrofia do nervo óptico, Xandy, como era chamado quando mais novo, perdeu quase que totalmente a visão. Ele notou o problema na volta às aulas, quando enxergar o que estava escrito no quadro se tornou missão impossível.

“As letras pareciam embaralhadas, e comecei a ficar muito assustado. Fui, então, a vários especialistas em diferentes cidades, mas não adiantou”, conta o músico de Alegrete (RS). Após apenas dois meses, Alexandre praticamente não conseguia mais enxergar.

Para o menino, cuja maior satisfação era acertar o gol, a cegueira parcial veio como um decreto: futebol, nunca mais. “Fiquei bem abatido e até depressivo. Era muito difícil acordar e sair da cama sem conseguir enxergar. No começo, mantive a esperança de que tudo voltaria a ser como antes, mas aquela longa espera me consumia por dentro e entristecia. Continuei fazendo minhas tarefas do dia normalmente, como tomar banho sozinho e comer. Precisei abandonar os estudos, mas tive que seguir em frente.”

Superando barreiras

Alexandre sabia que era preciso paciência para reaprender a viver. Sofreu muito nos primeiros dias, com inúmeras perguntas sem respostas, topadas na parede e adaptações, mas persistiu e, aos poucos, conseguiu normalizar sua rotina. Dois anos após perder a visão, ele já andava de bicicleta e jogava futebol. “Tive alguns pequenos acidentes. Uma vez pisei na bola e escorreguei, o que me causou um corte e cinco pontos. Outra vez estava andando de bike à noite e bati em um caminhão parado.”

Do pai, ele ganhou um cavaquinho aos 14 anos. Ficou empolgado e começou a ter aulas. Dois meses depois, Alexandre já fazia parte de um grupo de pagode. E foi assim que ele virou músico: começou também a cantar e se deu conta de que esse seria o caminho para reconstruir a vida. A música se tornou paixão e prioridade. Até nascer a sua filha.

O nascimento de Letícia Vitória marcou uma nova etapa em sua vida, aos 21 anos. “Quando a peguei no colo pela primeira vez, foi mágico e, ao mesmo tempo, frustrante, por não poder ver o rostinho dela. Mas trabalho com a minha imaginação e sei todos os seus detalhes, até a sua cor. Quando eu a abraço, tenho a certeza de poder estar vendo ela, sempre. Meus dedos enviam todas as informações que preciso ao meu cérebro, e tenho a nítida sensação de enxergar com as minhas mãos.”

Aos 26, retomou os estudos e conseguiu se formar. “A diretora do colégio chegou a afirmar que eu não poderia estudar lá por não haver professores capacitados para me dar aula. Tive que explicar o processo, dizer que eu lia e escrevia em braille. Eles me deram a vaga, e concluí o ensino médio com a admiração de colegas, professores e até da direção.”

Após ficar cego, o nascimento de outra paixão

Em 2013, aos 33 anos, Alexandre praticava musculação na academia quando conheceu Carlos Alberto, um estudante de educação física que fazia estágio no local. “Fomos nos tornando amigos. Um dia eu disse para o Carlos que gostaria de encontrar um esporte que pudesse praticar mesmo sem ter visão. Dias depois, ele chegou com a ideia do atletismo. Ele me perguntou o que eu achava de corrida, e respondi que sim, iria tentar, e avisei: ‘não sou de desistir’. E foi assim que comecei a correr.”

Dois homens aparecem na foto. Alexandre está à esquerda, correndo junto com o seu treinados Eduardo Peres.
Alexandre corre com o seu treinador Eduardo Peres. Foto: Ricardo Jaeger/Runner’s World Brasil

Alexandre pesava mais de 84 kg – grande parte era massa muscular –, e correr não era tão simples assim. A primeira tentativa foi feita em um parque. “Foi um desastre, não consegui nem dar uma volta completa, que era de 750m”, lembra. Mas eles voltaram ao parque dia após dia, e em três semanas Alexandre já conseguia completar dez voltas.

Superado o primeiro desafio, era hora de dar mais um passo. Alexandre e Carlos começaram a treinar para participar da primeira prova juntos (e a primeira da vida dele), a Rústica de Alegrete. A dupla correu 8 km em 43 minutos. Cinco dias depois correram uma meia maratona (21 km) na cidade vizinha, Uruguaiana.

“Aí não parei mais. Fui pegando o gosto pelo atletismo e, depois de algum tempo treinando bastante, eu me cansava mais tocando do que correndo”, conta.

No mesmo ano da primeira prova, ele e o amigo Carlos participaram de cinco competições juntos, e até hoje, quando as agendas permitem, eles se encontram para correr. “Mantemos uma relação de carinho e amizade e estamos sempre conversando. Ele é o principal responsável pelas minhas conquistas.”

Realizações e projetos

Em 2014, Alexandre conheceu Eduardo Peres Júnior, o seu treinador, responsável pela sua evolução técnica. “Com ele aprendi a pisar no solo da maneira certa, a movimentar meus braços e minha coluna direito. Desde que o conheci, melhorei muito”, diz.

Alexandre foi o primeiro deficiente visual a correr a Travessia Torres Tramandaí, em 2016. Também em 2016, ele concretizou o sonho de correr uma maratona, em Porto Alegre. Ficou em 2º lugar na sua categoria, com o tempo de 3h32. “Treinei focado, determinado e corri até o fim. Os dois guias que correram comigo ficaram cansados. Eu me senti superbem e consegui concretizar mais um sonho.”

Por causa do atletismo, Alexandre voou de avião pela primeira vez. “Meu sonho é ser um atleta reconhecido no Brasil todo. Vou focar nas maratonas e espero ter um tempo bom para integrar a equipe paralímpica nos Jogos do Japão 2020.”

E sabe qual a “técnica” que Alexandre usa para ter tanto foco e determinação enquanto corre? “Penso muito em minha família, que naquele momento está torcendo por mim. Também penso nas pessoas que não podem correr nesse momento em que eu posso, e isso me dá muita força. Quando corro, esqueço dos meus problemas, das coisas ruins, das angústias. Dou tudo de mim e busco ser uma pessoa e um atleta melhor do que fui ontem”, diz.

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