Entenda como a corrida pode atuar no tratamento da depressão

Por Scott Douglas, da Runner's World

corrida como antidepressivo
Foto: Shuterstock

Como todo corredor, gostamos da experiência de curto prazo de terminar uma corrida. Aquele sentindo que conseguimos lidar melhor com o resto do dia. O que não é universal é o reconhecimento de que, sem a corrida regular, outras áreas da nossa vida podem se desgastar. A corrida é nosso remédio. É a corrida como antidepressivo natural.

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Corrida como antidepressivo

Meredith e eu descobrimos isso há décadas, e, hoje, pesquisadores e praticantes estão começando a nos alcançar. Estudos mostram que o exercício aeróbico pode ser tão eficaz quanto antidepressivos no tratamento da depressão leve a moderada. Sem contar os “efeitos colaterais” como melhora da saúde e controle do peso em vez do inchaço e da disfunção sexual associados aos fármacos. Em países como Austrália, Reino Unido e Holanda, as diretrizes oficiais incluem exercícios como tratamento de primeira linha para depressão. Alguns psicólogos, inclusive, já estão fazendo sessões de terapia durante as corridas com os pacientes dispostos a isso.

Como o fato de movimentar o corpo muda a mente? Vários trabalhos – tanto em laboratório quanto com pacientes – mostram que há mais que endorfinas, os conhecidos opioides que o organismo produz durante algumas atividades, em ação nos exercícios físicos. A visão recente e mais sofisticada da capacidade de a corrida melhorar a saúde mental também leva em conta alterações estruturais no cérebro no longo prazo, bem como estados subjetivos, como humor e cognição. A ciência continua trabalhando para explicar a teoria por trás daquilo que nós, corredores, já sabemos na prática.

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A corrida muda nosso modo de pensar

Diferentemente de muitas pessoas que têm depressão, eu nunca fiquei incapacitado por causa da doença. A maioria das pessoas me considera produtivo, talentoso e até cheio de energia. Isso levando em conta também um odômetro de corrida de uma vida toda que marca mais de 176.000 km. Minha distimia tem dois componentes principais: weltschmerz, uma palavra alemã que significa tristeza pelo fato de a realidade não corresponder às expectativas da pessoa. O outro é a anedonia, ou diminuição da capacidade de sentir prazer.

A vida geralmente é como uma espera por uma série de obrigações que não são nem divertidas, nem horríveis. Às vezes, as coisas parecem tão sem sentido que percebo que não me importo com o fato de não me importar. 

A possibilidade de estarmos externamente ativos, mas internamente “deslocados”, com certeza pode mascarar quão comum são a depressão e a ansiedade. Segundo dados da OMS, 58% dos brasileiros (mais de 11,5 milhões) foram diagnosticados com depressão e 9,3% com ansiedade (esta a maior prevalência do mundo) em 2015. A incidência dessas doenças em corredores provavelmente é semelhante; uma revisão publicada na revista científica British Journal of Sports Medicine, em 2017, não mostrou diferenças em sintomas depressivos entre o que os pesquisadores classificaram como “atletas de alto desempenho” e não atletas. Todos os níveis de corredores são afetados, e atletas de elite, como o olímpico Adam Goucher, e os campeões da prova de 100 milhas (160 km) Western States, Rob Krar e Nikki Kimball, falaram publicamente sobre suas depressões.

Ansiedade e depressão

É claro que todo mundo fica triste e preocupado às vezes. Então o que distingue esses sentimentos de depressão e ansiedade clínicas? No curto prazo, os terapeutas geralmente procuram alterações significativas nas emoções, comportamento e funcionamento psicológico. Eles também focam em como os sintomas de sensação de agitação, ameaça e desconforto (para ansiedade) ou falta de alegria, letargia e apatia (para depressão) interferem no modo como a pessoa encara a vida todos os dias. “Eu observo como essas coisas afetam atividades da vida diária, como sono, trabalho e relações interpessoais”, afirma Franklin Brooks, assistente social clínico em Portland, Maine (EUA). “Há uma grande diferença entre ter um dia ruim no trabalho e ter um dia ruim no trabalho e, por isso, não querer sair da cama no dia seguinte.”

Essa descrição clássica da depressão se assemelha ao que enfrentou Amelia Gapin, de 34 anos, engenheira de software e maratonista em Nova Jersey (EUA). “Eu tive episódios em que, por seis semanas ou até mesmo dois meses, eu não conseguia nem sair da cama”, conta ela. “Nos fins de semana, eu acordava e levava duas horas só para conseguir chegar ao sofá.”

Esse sentimento também é relatado por Ian Kellogg, de 22 anos. Ele é corredor universitário na Universidade de Otterbein, em Westerville, Ohio (EUA), e o seu recorde pessoal nos 5 km é de 14min43. “Quando caio em depressão, aí, sim, deixo de correr. Eu não tenho energia ou força de vontade para sair de casa, mesmo sabendo que meu treinamento está sendo prejudicado e que apenas meia hora já faria eu me sentir melhor.”

Outros acharam um modo de usar a corrida como solução para superar essa forma de depressão.

Estabelecendo metas

Em junho de 2015, Pati Haaz, profissional de finanças em Nova Jersey, teve um aborto aos dois meses de gravidez. Ela teve uma depressão grave e começou a faltar ao trabalho. A culpa por estar deprimida agravou a situação. Pati começou a se consultar com um terapeuta que lhe perguntou sobre seus hobbies antes da depressão. Pati, de 43 anos, disse que era corredora e que, antes de engravidar, tinha planejado fazer sua primeira maratona em Nova York, no outono daquele ano. O terapeuta a estimulou a retomar a corrida. Pati decidiu que precisava da meta de terminar uma maratona para superar a inércia que a depressão havia trazido para sua vida.

“Se eu fosse correr só por correr, teria parado minha corrida normal por volta dos 10 km. Mas, no treino para a maratona, fazia 25, 29, 32 km, que era algo que eu nunca tinha realizado. Consegui carregar essa sensação de dever cumprido para outras áreas da minha vida”, contou a corredora.

Pouco já é suficiente

Mesmo as corridas mais curtas ajudaram Pati a pensar de uma forma diferente. “Se eu acordasse no meio da noite e pensasse sobre o que me deixava triste, tudo ficava ainda pior. Mas, quando eu estava correndo, pensava sobre essas mesmas coisas e, de alguma forma, conseguia processá-las de uma forma diferente. Eu começava a correr com todos aqueles pensamentos negativos e, depois de 1,5 ou 3 km, eles desapareciam.”. Cinco meses após o aborto, ela terminou a Maratona de Nova York em 6h38. Reavaliar pensamentos persistentes – pensar de forma diferente sobre assuntos cuidadosamente analisados – é um dos principais atrativos para quem tem problemas de saúde mental.

Cecilia Bidwell, de 42 anos, advogada na Flórida (EUA) que tem ansiedade, afirma o seguinte: “Quando estou correndo, os pensamentos vêm e vão, não fico preocupada. Eu consigo pensar sobre as coisas de uma forma objetiva. Percebo que o que eu acho que é um grande problema não vai durar muito tempo”. O efeito se estende para os estressantes dias de trabalho de Cecilia. “Quando faço uma boa corrida pela manhã, se surgem problemas às duas da tarde, eu lido com eles muito melhor. Eu não fico em crise nem me pergunto: ‘Por que estou aqui?”

Pensando no momento presente

O foco cognitivo mais imediato proporcionado pela corrida também ajuda. “Quando nos sentimos sobrecarregados pela ansiedade e depressão, passar do ‘grande cenário’ – toda frustração – para a tarefa que está acontecendo no momento, como correr um trecho de 7 km com duas subidas, aciona uma alça de feedback positivo que se prolonga por toda a corrida e tira nosso pensamento e emoções da trincheira da negatividade”, explica a norte-americana Laura Fredendall, doutora em psicologia. Essas mudanças de humor e pensamento são mais acessíveis para corredores.

Em um estudo publicado em 2008 na revista científica Archives of Physical Medicine and Rehabilitation, ultramaratonistas, pessoas que faziam exercícios moderados regularmente e pessoas sedentárias caminharam ou correram por 30 minutos em um ritmo escolhido por cada um, mas que fosse um pouco difícil. Depois do treino, o humor de todos havia melhorado. Mas o de ultramaratonistas e pessoas que faziam exercícios moderados melhorou duas vezes mais quando comparado ao de pessoas sedentárias. Além disso, os ultramaratonistas e aqueles que faziam exercícios regularmente relataram mais vigor e menos fadiga após o treino. Embora as pessoas sedentárias tenham relatado o mesmo.

Isso ocorre porque os corredores conseguem manter um bom ritmo por mais tempo sem acionar o sistema anaeróbico, levando aos processos fisiológicos que resultam na melhora do humor, conforme explica Panteleimon Ekkekakis, professor na Universidade do Estado de Iowa (EUA) e autoridade na área de psicologia esportiva. “Em pessoas sedentárias, o limiar ventilatório – ponto em que o exercício deixa de ser puramente aeróbico – é muito baixo”, afirma. “Então elas saem do sofá, dão alguns passos e já estão acima do seu limiar ventilatório. Se você corre regularmente, tem o condicionamento cardiorrespiratório necessário para manter a intensidade de exercício que se associa ao efeito de se sentir melhor.”

Romance químico

O que faz a gente se sentir melhor? A resposta rápida que costumamos ouvir é “endorfinas”. No entanto, focar na nebulosa “euforia do corredor” ignora alterações cruciais na estrutura do cérebro. Além dos padrões de pensamento que podem ser induzidas pela corrida. As endorfinas passaram a fazer parte do vocabulário do corredor na década de 1970. Foi quando se descobriu que esse elemento químico, que se liga a receptores de neurônios no cérebro, é liberado em elevadas quantidades durante a corrida. Vários estudos mostraram que níveis mais elevados de endorfina no sangue após a corrida se correlacionavam com a melhora do humor.

Em 2008, pesquisadores alemães usaram tomografia computadorizada por emissão de pósitrons (PET-TC), um exame de imagem usado com frequência na investigação de câncer, para avaliar o cérebro de triatletas enquanto eles corriam por duas horas. Eles verificaram níveis elevados de endorfinas no córtex pré-frontal e em outras partes do cérebro associadas ao humor. E esses níveis estavam alinhados com os relatos de euforia dos atletas.

A leveza da corrida

Mas as endorfinas não são tudo. Como parte da sua pesquisa em evolução humana, David Raichlen, professor de antropologia na Universidade do Arizona (EUA), mediu os níveis de endocanabinoides antes e depois da corrida de corredores, cães e furões. Endocanabinoides são substâncias que se ligam aos mesmos receptores no cérebro que o THC. Essa é a principal substância responsável pela euforia proporcionada pela maconha.

David afirma que há duas teorias principais sobre o motivo pelo qual a corrida leva ao aumento dos níveis de endorfinas e endocanabinoides. Primeiro, quando os seres humanos se tornaram caçadores/coletores há cerca de 2 milhões de anos, eles ficaram mais ativos; a liberação desses elementos químicos, que atuam no alívio da dor, pode ter evoluído, permitindo movimentos mais rápidos e por um período mais prolongado. Nesse cenário, o aspecto de se sentir bem é um subproduto. Em segundo lugar, os níveis mais elevados desses elementos, enquanto ativos, pode ter motivado a continuidade do movimento. Isso, por sua vez, levaria à obtenção de mais alimentos e, em última análise, aumentaria as taxas de sobrevivência. David afirma que os dois mecanismos podem ter ocorrido simultaneamente.

Seja lá qual for o mecanismo original para essas adaptações evolutivas, elas são especialmente úteis para corredores modernos com problemas de saúde mental. É bom correr por uma hora e passar de um humor razoavelmente bom para algo melhor. É uma mudança fundamental passar de triste a feliz graças a uma infusão de substâncias que fazem nos sentir bem. “Quando eu termino uma corrida penso: ‘Uau, é assim que a maioria das pessoas se sente o tempo todo’”, conta Cecilia.

Benefícios a curto e longo prazo

Melhorar o humor no curto prazo devido a endorfinas e endocanabinoides é uma coisa. Mas a corrida realmente contribui para a saúde mental com o tempo, graças a mudanças na estrutura do cérebro. Segundo trabalho de revisão publicado na revista científica Clinical Psychology Review, “o treino fortalece um processo que confere resiliência duradoura contra o estresse”. Aparentemente, isso acontece porque a corrida regular produz as mesmas duas alterações que são consideradas responsáveis pela eficácia dos antidepressivos. Aumenta os níveis dos neurotransmissores serotonina e norepinefrina e a formação de novos neurônios, ou neurogênese.

A neurogênese ocorre primariamente devido a uma proteína chamada fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF). “Ela ajuda os neurônios a gerarem impulso elétrico e a se conectarem”, afirma Laura. A maior parte dessa alegria está no hipocampo, área do cérebro que costuma ficar reduzida em pessoas com depressão. “Exames de ressonância magnética (RMN) mostraram que, depois de uma intervenção com atividades físicas por seis meses, há um aumento visível no tamanho do hipocampo”, afirma Panteleimon.

Como observa Panteleimon, é preciso estar bem condicionado para realmente ter os benefícios diários que podem levar a alterações estruturais. É claro que você também precisa sair de casa, o que pode ser particularmente difícil se estiver deprimido. Mas o sucesso na corrida em um dia especialmente difícil faz com que seja mais fácil sair da próxima vez. E isso pode estimular outro benefício essencial da saúde mental na corrida.

Eu acho que consigo, eu acho que consigo

Os níveis de substâncias químicas no cérebro são apenas parte do estado mental. Há também a cognição ou processos mentais. A cognição inclui não só o pensamento direto (“devo correr mais hoje porque amanhã vai ter uma tempestade de neve”). Mas também fenômenos mais complexos, tais como o modo como você processa seus pensamentos.

Uma característica marcante da depressão é o pensamento absoluto de autoderrota: “Tudo está mais difícil do que deveria ser”; “Não tenho prazer na vida”; “Vai ser sempre assim”. Eu aprendi que calçar o tênis e sair para correr é o melhor jeito de me libertar de pensamentos desse tipo. Diariamente, a corrida me lembra de que sou capaz de superar a apatia e o torpor. Vendo essa pequena vitória, eu me convenço de que é possível fazer progressos na conquista de objetivos profissionais. Para não me sentir sozinho com tanta frequência ou para eu descobrir como lidar com a aposentadoria. “A experiência subjetiva de se ver fazendo algo pode te levar a se sentir melhor”, afirma Laura.

Panteleimon diz que a cognição é a chave para compreender outro aspecto da eficácia da corrida. “Se você toma antidepressivos e eles fazem você se sentir melhor, a atribuição psicológica é externa. Os pacientes acreditam que o motivo pelo qual se sentem melhor é a medicação que estão tomando”, explica. “Com o exercício, a atribuição é interna. O motivo pelo qual me sinto melhor é porque estou fazendo isso, estou me esforçando. Talvez seja esse o benefício adicional do exercício comparado aos antidepressivos: a sensação de empoderamento, a sensação de que se está no controle da situação.”

Ninguém fala sobre a euforia do golfista

Há algo especificamente na corrida que seja bom para a saúde mental? Ou qualquer forma de atividade física proporciona alívio? A resposta curta é que ninguém sabe ao certo, e é improvável que existam pesquisas definitivas comparando as propriedades que melhoram o humor entre as várias formas de atividade física. “Um estudo desse tipo teria que abordar múltiplos braços. Por exemplo, intensidade, duração ou frequência ideal de diferentes formas de atividade física. Então seria possível começar com um estudo que custasse de US$ 1 milhão a 3 milhões”, explica Panteleimon. “O financiamento governamental disponível simplesmente não está nesse nível.”. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a depressão é a principal causa de incapacidade e má saúde no mundo. Porém, em média, apenas 3% do orçamento de saúde governamental é gasto com problemas de saúde mental.

Pode-se afirmar que fazer atividade física com um propósito é melhor que se exercitar ocasionalmente. Um estudo publicado na revista científica Medicine & Science in Sports & Exercise mostrou melhora do humor após o treino, mas não depois de atividades da vida diária, como subir escadas. O exercício aeróbico parece ser mais eficiente que algo como musculação. Uma pesquisa de revisão publicada na revista científica Preventive Medicine mostrou que pessoas com baixos níveis de condicionamento cardiovascular tinham maior risco de apresentar depressão.

Como obter o máximo benefício

Quanto tempo correr

A maioria dos estudos mostrou melhora significativa do humor após
30 minutos de corrida. Mas qualquer corrida é quase sempre melhor que não correr; se você tiver tido um dia difícil, comece com uma rota flexível. Dessa forma você poderá encurtar ou prolongar a distância conforme sua vontade.

Quanto esforço fazer

A maior melhora do humor pós-corrida acontece depois que se corre em 70% a 80% da frequência cardíaca máxima ou em ritmo que permita manter uma conversa, segundo uma pesquisa. Ainda assim, fazer um treino pesado pode dar a sensação de dever cumprido de que você precisa. Isso pode ser aplicado a outras áreas da vida quando as coisas ficarem pesadas demais. E se só sair de casa já for difícil para você, permita-se correr mais lentamente. Um estudo publicado na revista científica Medicine & Science in Sports & Exercise mostrou que os sintomas de depressão melhoraram mais quando os participantes malharam em uma intensidade escolhida por eles, comparado a quando se fez exercícios com uma intensidade moderada orientada.

 

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