Estudos inovam os tratamentos das lesões e encurtam a fase de “molho”

Por Sam Murphy, da Runner´s World

dor
Foto: Shutterstock

Dor é a forma de o corpo dizer que alguma coisa está errada; que é hora de parar de correr e tratar aquele incômodo ou lesão. Mas um novo olhar da ciência sobre a dor está emergindo. Ela pode revolucionar o modo como vemos e respondemos às lesões de corrida e reduzir significativamente a quantidade de tempo que passamos sem correr. Leia abaixo o relato de Sam Murphy publicado na Runner´s World

A dor é uma percepção

Em um inverno, meu quadril começou a doer enquanto eu corria. No começo, sentia em momentos pontuais. Depois de pouco tempo, a dor se estabeleceu. O fisioterapeuta atribuiu a culpa a deslizes e derrapagens em trilhas enlameadas. Disse para eu parar de correr e me passou exercícios para alongar e fortalecer os músculos. Mas nada – descanso, massagem, exercícios – ajudou.

Dias se tornaram semanas e eu mancava miseravelmente por aí. Acabei marcando uma ressonância magnética e me preparei para os resultados. O problema? Nenhum. Fiquei surpreso. Richmond Stace não. Ele é um fisioterapeuta especialista em tratar dor. “A dor é uma percepção. Ela não está necessariamente vinculada a algo físico”, diz Richmond.

Como assim?

É difícil entender a ideia de que a dor que você está sentindo não seja causada diretamente por – e proporcionalmente a – um dano nos tecidos; mas experiências como a minha têm se reproduzido em muitos estudos. Isso mostra que pode existir dor onde não há tecidos danificados, mas também que podem haver tecidos danificados sem dor.

Em um estudo, ressonâncias magnéticas dos joelhos de 44 sujeitos sem sintomas de dor revelaram degeneração de menisco ou fissuras (danos na cartilagem dos joelhos) em quase todos os casos. Outra pesquisa, publicada no The New England Journal of Medicine, descobriu que 38% dos sujeitos sem dor mostravam anormalidades (como discos “salientes”) na coluna lombar – um tipo de anormalidade que poderia ser usada para “justificar” a dor, se houvesse presença dela. Então; se dor não é sinônimo de lesão, o que exatamente ela quer quando levanta sua bandeira vermelha?

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Sem cérebro não há dor

“A dor é uma mensagem ou um ‘estado de necessidade’ (como fome ou sede) que força uma ação protetora”, diz Richmond. “Existe uma necessidade a ser atendida, e nossa atenção é dirigida a essa parte específica do corpo. Temos que decidir se realmente existe uma ameaça ou um perigo na região onde estamos sentindo a dor.”

Então por que, no meu caso, o quadril, e não outra parte do corpo, doía? “O cérebro faz as melhores escolhas”, explica Richmond. “Se há evidências suficientes para sugerir que possa haver um problema no quadril; já é o suficiente para que o mecanismo de proteção entre em ação.” A ameaça ou o perigo poderiam ser o resultado de uma carga de treinamento excessiva, de uma alteração biomecânica ou de uma redução de força. Não do que consideraríamos normalmente uma lesão.

Existem muitas pesquisas que corroboram a ideia de que a dor é uma construção do cérebro. O professor Lorimer Moseley, especialista em investigar a dor em seres humanos, lembra que o disseminado fenômeno da dor do membro fantasma em amputados não existiria se ela representasse única e exclusivamente um dano físico.

Como sua perna esquerda pode doer se você nem mesmo a possui? Em um dos estudos de Lorimer, foram postos membros protésicos diante de pessoas como se fossem suas próprias pernas, e quando essas próteses foram atacadas, elas sentiram dor.

Atente-se

No entanto é importante enfatizar que, embora a dor seja produzida pelo cérebro e não pelo corpo; isso não quer dizer que um dano tecidual – ou a dor decorrente dele – não seja real. “Ela é real, mas suas relações são complicadas”, diz Paul Ingraham, criador do portal online Pain Science.

A ciência moderna da dor se baseia no que é conhecido como modelo biopsicossocial – que leva em conta os fatores biológicos, psicológicos e sociais que afetam nossa sensação de dor. “Esse modelo não sugere que não existam fatores físicos, mas difere da visão tradicional ao reconhecer que lesão e dor não estão atados um ao outro”, fala Paul. “Que é o que quase todo mundo supôs durante muito tempo. E muitos profissionais, mesmo estando mais bem informados agora, costumam esquecer o quão poderosamente a dor é influenciada pela percepção.”

Richmond concorda. “Procurar uma solução unicamente física para a dor costuma resultar em piores recuperações. Ele faz uma analogia: imagine que você está no cinema e a tela fica em branco. O atendente entra e chacoalha a tela. “Isso restabelece a imagem? Não. O problema não está na tela, está em outro lugar. Não importa quantas vezes você a chacoalhe, não vai resolver.”

A forma como você sente afeta a dor

Independentemente de a dor que você está sentindo nos joelhos ser resultado de uma lesão (o que Paul chama de “questão tecidual”) ou não; sua intensidade pode ser influenciada em grande parte por seu estado de espírito. Isso inclui humor, quantidade de estresse e, segundo o fisioterapeuta Tom Goom, seus pensamentos sobre a própria dor e o que ela significa.

“Para a maioria dos corredores, a corrida é muito mais que uma simples forma de se exercitar”, diz Tom. É nossa rede de amigos, nossa válvula de escape para o estresse e nossa arena, onde nos divertimos e nos sentimos no controle e determinados. Então perder tudo isso é uma coisa importante, que cria estresse e ansiedade, o que, consecutivamente, pode engrandecer a sensação de dor.

Um estudo com violinistas oferece um ótimo exemplo disso. Pesquisadores descobriram que as mãos dos músicos que tocavam as cordas tinham uma sensibilidade maior à dor que as que não tocavam, devido à importância dada a elas.

“Se a corrida forma grande parte da sua vida social, é importante continuar envolvido com ela de outras formas se você não puder correr”, fala Tom. Talvez você possa continuar indo ao clube ou à academia para fazer os exercícios de fisioterapia, participar dos aquecimentos ou dos desaquecimentos ou se oferecer como voluntário.

Cuide das suas emoções

Ser treinador foi uma benção para mim, porque permitiu que eu me realizasse por meio do sucesso dos outros. Muitos estudos mostraram que estados de humor positivos (contentamento, calma, alegria) podem reduzir a sensibilidade à dor. Mas, segundo Greg Lehman, fisioterapeuta especializado em aplicar a ciência da dor à biomecânica, a conexão entre dor e estado mental funciona em ambas direções. “Crenças irracionais ou desproporcionais e sensações profundas de preocupação ou medo podem intensificar a dor”, diz.

Um estudo realizado na Universidade de Málaga, na Espanha, descobriu que sofrimentos emocionais intensos estavam associados a um grande aumento dos níveis de dor.

Sinais contraditórios

O próprio processo de tratamento também pode ser afetado por fatores externos. “Fatores sensibilizantes como estresse e privação de sono podem fazer com que lesões doam antes, com mais força e por mais tempo”, conta Paul. Um estudo realizado no Kings College de Londres, no Reino Unido, descobriu que níveis elevados de cortisol, o hormônio do estresse, retardavam o tratamento. É um processo cruel: você ama correr, a dor te força a parar e o sofrimento que você sente por ter que parar intensifica e prolonga a dor.

Provavelmente eu acharia improvável que meu estado mental pudesse afetar a intensidade da minha dor se não tivesse tido uma experiência pessoal. No mesmo ano da minha lesão de quadril, meu pai estava morrendo de um tumor cerebral. Em seus dias finais, nós nos reunimos ao redor da sua cama, compartilhando memórias entre lágrimas e risos.

Meu quadril estava tão enrijecido que eu mancava todas as vezes que me levantava para andar, e de noite a dor pulsava insuportavelmente quando me deitava de lado. No entanto, uma semana depois que o sofrimento dele terminou, corri 10 km sem dor. Não foi o fim da minha lesão, mas me deu uma ideia do quanto a dor podia ser afetada por coisas aparentemente sem relação.

Histórico

“Lembre-se de que o cérebro não possui um acesso real ao corpo”, alerta Richmond. “Ele apenas recebe sinais, a partir dos quais deduz o que está acontecendo e cria uma percepção.” No modelo biopsicossocial da dor, a exatidão dessa percepção está baseada em todas as coisas que “levamos” à nossa sensação de dor.

“O que você precisa para ter dor no joelho?”, Richmond me pergunta. “Um joelho”, eu digo. “Sim, e o que mais?” “Um cérebro?” “Sim, e um sistema nervoso, um ego, uma história… seu cérebro usará tudo isso para avaliar como responder aos sinais que ele recebe.” E a respeito de lesões de corrida, um dos fatores mais significativos para modelar essa resposta são suas lesões prévias.

Encontre a fonte

“‘Gato escaldado tem medo de água fria’ é um princípio básico da dor”, ensina Paul. “O cérebro lembra e fica desconfiado. Então um segundo caso de síndrome da banda iliotibial ou de fascite plantar de um corredor desperta uma tolerância inferior. Ele pensa que o tecido está sobrecarregado novamente; mas é provável que a carga seja um fator menos importante dessa vez: ainda é um fato, mas já não é mais o único. E quanto mais os corredores voltam a sofrer a mesma lesão, mais isso é verdade.”

Desde minha lesão de quadril, pareço ter um sargento extremamente zeloso com minha saúde e minha segurança sempre à espreita dentro do cérebro. Considerando que o indicador mais comum de uma lesão de corrida são lesões anteriores, é intrigante se questionar se a dor é o resultado não de uma biomecânica incorreta ou de insuficiente fisioterapia, mas de um cérebro que aprendeu com uma experiência passada a superintensificar a dor. E se esse for o caso, como escapamos desse círculo vicioso?

“O primeiro passo é descobrir o que realmente está acontecendo”, aponta Greg. Uma avaliação rigorosa de um fisioterapeuta e/ou de um osteopata especialista em dores crônicas ou em gestão da dor determinará se há fatores físicos contribuindo para a produção da sua dor. “Você precisa saber se ela é algo sério e que requer um reparo específico (como rupturas de ligamento), se você precisa descansar ou parar ou se continuar com as atividades – que para você são tão significativas – será mais proveitoso no fim das contas”, pondera Greg.

Movimento que cura

Por exemplo, uma tendinite pode parecer ser a causa da dor de determinados corredores. “Certamente vão querer modificar os treinos deles e talvez acrescentar exercícios para fortalecer seus tendões, mas eles também poderiam continuar correndo com apenas um pouco de desconforto. Um pouco de dor e incômodos são normais durante o treinamento.”

De um ponto de vista exclusivamente físico, correr com dor parece um mau conselho. Mas cada vez mais a ciência da dor está nos afastando da recomendação “é melhor parar”, que poderia estar reforçando involuntariamente a percepção do cérebro de que “algo ruim” está acontecendo no corpo e que ele precisa de proteção. “Uma vez que patologias sérias tenham sido descartadas, a maioria das pessoas pode continuar, de certo modo, correndo ou andando com a maioria das lesões”, diz Greg.

Pesquisas mostraram que exercícios isométricos (veja abaixo) podem proporcionar um alívio imediato à dor nos casos de tendinites patelares e calcâneas. “Realmente, quase qualquer tipo de exercício parece modular os sinais de irrigação tecidual que são enviados pelo corpo”, aponta Greg. Richmond está de acordo: “Simplesmente descansar não ajuda em casos de dor crônica e persistente. Nada terá mudado quando você voltar a se exercitar. O movimento é um bálsamo.”

Antes de mais nada; consulte um especialista

Então o que são das tradicionais terapias às quais recorremos para tratar dores e lesões, como massagem dos tecidos profundos e rolo de espuma? “Essas abordagens podem ter um efeito pequeno e de curto prazo na redução da dor”, diz Tom.

“No entanto elas não são boas estratégias para períodos prolongados, podendo até mesmo agravar os sintomas em alguns casos. E podemos nos tornar dependentes delas em vez de procurar soluções de longa duração, então elas costumam funcionar melhor como complementos de tratamentos mais ativos da dor – como exercício, reeducação funcional e mudança de estilo de vida.”

Isso não é uma carta branca para seguir adiante com os treinos, passando cegamente por cima da dor e de possíveis danos teciduais. Trata-se de descobrir onde você está e de reconhecer que você não pode assumir que o alcance – ou até mesmo a presença – da dor é sempre um reflexo verdadeiro do que está acontecendo dentro do seu corpo.

Há, no entanto, alguns indícios mais prováveis. Se você caiu no meio-fio e torceu o tornozelo, provavelmente estabelecerá uma conexão lógica entre dor e lesão: “Dores simples costumam ser exatamente o que parecem”, fala Paul. “Com ‘simples’ eu me refiro a uma localização anatômica específica, afetada por uma posição ou movimento, com uma clara relação com um trauma ou uma sobrecarga.”

Esse tipo de dor ‘aguda’ tende a se correlacionar bem com um dano tecidual (embora sua sensação de dor possa também ser modulada por outros fatores). Mas, quando a dor persiste muito tempo depois de que as estruturas do seu corpo teoricamente já deveriam estar curadas; as coisas ficam mais complexas.

Inteligência central

Uma dor crônica é aquela que reincide ou dura de três a seis meses. É uma dor contínua que não pôde – ou que já não pode – ser explicada por “questões teciduais”.

Se, semanas depois de uma lesão, você estiver pensando: “Mas ainda dói! Tem que haver algo errado”, mesmo que você tenha se assegurado de que não existe nenhum dano significativo, é provável que o problema não esteja no seu corpo; mas no seu sistema nervoso central. “Essa sensibilização central pode até causar uma questão tecidual pouco importante para acarretar uma dor desproporcionalmente intensa”, diz Paul.

Greg compara a reação com um alarme de fumaça. “Um alarme de fumaça não nos diz quanta fumaça existe. Ele pode disparar até mesmo quando não há fumaça nenhuma e continuar disparado depois do incêndio apagado.”

Pesquisas mostraram que pessoas que sofrem dores altamente sensitivas sentem uma dor “antecipadora” antes que um estímulo seja aplicado (como uma “sensação” de dor de injeção antes de que a agulha encoste na pele), assim como uma resposta elevada ou desproporcional a dores leves e até mesmo sensações agradáveis como o toque.

Digamos que você acaba de voltar a correr depois de meses lutando contra uma fascite plantar. “Mesmo quando você está colocando o tênis, seu cérebro já está se perguntando se correr é seguro”, conta Richmond. “Então, quando você estiver a ponto de pisar em uma pedra, é provável que sinta uma dor desproporcionalmente intensa, porque o cérebro está simplesmente respondendo como previsto.”

Uma vez que a sensibilização ocorre, o desafio é exercitar o cérebro para fazê-lo entender que o movimento é seguro. “Atletas e terapeutas tendem a ver a reabilitação como um processo de adaptação física. Mas conforme e quanto mais longo for o problema, maior a probabilidade de que seja algo neurológico”, explica Paul.

Pouco a pouco

“Se você chegou a um estágio em que suspeita que seu sistema nervoso já não esteja lhe dando sinais sensíveis e úteis de dor, tome cuidado extra com terapias manuais dolorosas e seja cético quanto a explicações biomecânicas para justificar sua dor. Esses fatores são apenas parte da questão. É melhor focar na dessensibilização e em dizer ao sistema nervoso central que tudo bem usar aquela anatomia novamente.”

Voltando ao exemplo da fascite plantar, você pode começar vendo se pode se apoiar sobre uma perna sem sentir dor; e, se puder, pode ficar também na ponta do pé? Pode trotar alguns passos no lugar? Continua sem dor? Pode correr 20 segundos sem dor? Um minuto? Descobrindo o que você pode fazer sem dor, é possível começar a se movimentar dentro de um alcance confortável. À medida que o cérebro for controlando seu sistema de alarme, esse alcance vai aumentar gradativamente.

A nova ciência da dor não sugere que a dor não seja real ou que “tudo está dentro da sua cabeça”. Mas ela nos permite deixar de ver as lesões unicamente como problemas de tecidos. Isso amplia o âmbito de coisas que podemos fazer para tratá-las. Junto dos exercícios de fisioterapia, pode ser que precisemos levar em conta nossas crenças sobre a corrida. Sobre nosso estilo de vida. Sobre nossa saúde mental e física como um todo.

Saber que não havia nenhum sinal de deterioração na articulação do meu quadril me ajudou a recuperar. Embora ainda doesse; isso me livrou de dois medos: (1) de que eu estava “acabado” e jamais poderia voltar a correr sem dor e (2) que voltando a correr poderia causar um dano ainda maior.

Foi necessária uma mudança de mentalidade – e um novo fisioterapeuta, em quem eu realmente acreditasse – para eu voltar para a estrada.

Alivie a dor

Mantenha a isometria

Em contração isométrica, o músculo se contrai sem encurtar ou esticar. Por exemplo, os posteriores de coxa ou os glúteos se contraem isometricamente em uma ponte. “Isométricos são conhecidos por seus efeitos inibidores de dor, embora pesquisas destaquem que as respostas variam de uma pessoa para a outra”, diz Tom.

Um estudo recente publicado no British Journal of Sports Medicine descobriu que, com tendinites, exercícios isométricos reduzem a dor durante 45 minutos. “Em alguns casos, isométricos podem reduzir a dor para permitir uma janela de oportunidade. Isso facilita a reabilitação ou a prática contínua de um esporte, mas não são a cura de todos os males”, adverte Tom.

Quando? Antes da fisioterapia.

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Trabalhe a mente

Para ver como a dor é controlada pelo cérebro; experimente esta dica da treinadora e seguidora do método Feldenkrais Jae Gruenke: “Se você sentir dor ao correr, imagine que ela está no mesmo lugar, mas do outro lado. À medida que você correr imaginando isso, provavelmente sentirá uma alteração no movimento e o desconforto começará a desaparecer.” Use com bom senso – não para mascarar dores severas.

Quando? Para aliviar incômodos que surgem no meio da corrida.