Enfrente o calor

Só entendendo tudo o que acontece quando o termômetro sobe é que podemos tomar as decisões certas

Foto: Warren Goldswain.

Por Bruno Romano

Enquanto muita gente comemora a chegada do calor, grande parte dos corredores começa a pensar no sofrimento. Mas não precisa ser assim. Termômetros elevados, acredite, podem até se tornar grandes aliados para melhorar seu desempenho. A capacidade de o ser humano se adaptar ao calor é notável, e sua habilidade para fazer isso é mais veloz até do que a de se ajustar a outras variáveis, como o frio e a altitude. Mas, claro, se o organismo não estiver bem adaptado ou se você forçar a barra demais, o resultado pode ser desastroso. É como se um mesmo ingrediente (altas temperaturas) fosse capaz de salvar ou estragar um prato delicioso (sua corrida).

O lance do calor não é encará-lo de frente, mas, sim, pelas beiradas. Entender o que está acontecendo para usá-lo de forma eficiente. Em vez de simplesmente negar a sua existência (ou fugir), ajude o seu corpo a conviver com ele. Em outras palavras, assim que você entende o porquê é tão mais difícil correr em climas quentes, estará bem en
caminhado para superar o desafio – e é para isso que fizemos esta reportagem. Mas uma coisa a gente deve adiantar desde já: muitas vezes será preciso desacelerar. Pode parecer óbvio, mas ajustes de ritmo, esforço, mentalidade e até expectativas são a chave quando o termômetro sobe.

Veja o caso dos corredores de Fortaleza, no Ceará, por exemplo. Em uma terra onde nem é preciso esperar o verão para o calor aparecer, treinos de assessorias esportivas normalmente começam por volta das 5h30 da manhã. Não é incomum encontrar maratonistas saindo para corridas mais longas às 4h45. Na maior parte do ano, os medidores marcam 28ºC logo cedo e, nos meses mais quentes, passam facilmente dos 30ºC, já no comecinho do dia. Além de treinar bem cedo, outra recomendação do treinador Dicson Falcão, diretor da assessoria KM, é correr de forma mais cadenciada. “Os primeiros quilômetros são cruciais, e o corredor precisa estar preparado psicologicamente para aceitar esse ritmo mais lento justamente quando está mais descansado”, sugere Dicson.

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Em Campo Grande (MS), o clima é ainda mais traiçoeiro. A melhor época de treino, para se ter uma ideia, é o fim do verão e o começo do outono, quando a temperatura é “amena”, geralmente entre 27ºC e 33ºC. Nos meses mais frios, ela pode descer até os 5ºC, com alta umidade. No período mais quente mesmo, o forno liga de novo em potência máxima, com marcas acima dos 40ºC e umidade nas alturas. “Para ter uma ideia, nosso corpo transpira mesmo quando parado”, relata Rudnei Alves, diretor esportivo da VO2 Corrida de Rua, clube pioneiro na cidade que hoje assessora de iniciantes a ultramaratonistas.

“Para quem está começando e não consegue treinar nos horários recomendados, com temperaturas mais baixas, pedimos que corra na esteira ou no parque, em um local mais arejado e abrigado, pois a exposição é mesmo muito grande”, conta. No caso dos mais experientes, a ideia é se adaptar primeiro ao clima (calor e umidade) para depois encaixar um ritmo mais forte. Mesmo assim, encarar o calor extremo todos os dias não é a melhor saída, indica o treinador, que sugere no máximo dois treinos da semana em condições mais desafiantes. “Mais que isso, é desgaste demais”, resume.

Correr debaixo de sol forte diariamente não dá ao corpo tempo para se recuperar e trabalhar a performance em treinos importantes, como intervalados e longões, por exemplo. Para Rudnei, um dos dois treinos “quentes” semanais pode trazer um trecho em ritmo de prova ou alguns tiros, variando de acordo com objetivos e individualidades, e o outro pode servir para testar roupas, alimentação e hidratação. Quem já experimentou condições mais extremas sabe bem que essa parte da preparação fala muito alto no dia da prova.

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O carioca Marcio Villar conhece esse cenário. Ele já passou sete dias correndo sozinho na Amazônia, na Jungle Marathon. Foram 500 km de floresta em trechos com até 50ºC. Já no Vale da Morte, nos EUA, ele cravou 434 km em 79 horas, em temperaturas que quase atingiram 60ºC em alguns momentos. Mesmo assim, ele garante: “Dia de prova é dia de ser feliz, a hora de sofrer é no treino”. É claro que não dá para sorrir por quase 80 horas debaixo de sol escaldante, mas a mensagem de Marcio é clara: é fundamental adaptar o corpo e trabalhar a mente. “Não há limites quando nos preparamos e acreditamos em algo”, afirma.

É justamente nessa busca por quebra de limites que o calor muitas vezes se torna o grande vilão na corrida. Basta lembrar de um caso recente, transmitido ao vivo na última Olimpíada. O francês Yohann Diniz, da marcha atlética, sofreu com distúrbios intestinais e, mesmo assim, tentou bravamente seguir na prova disputada em um dia de muito calor. O resultado não foi nada agradável de se ver e mostrou um corpo em desequilíbrio e sofrendo com prováveis erros nas estratégias de hidratação e alimentação. Esses dois elementos são decisivos para uma boa performance em dias quentes e pedem tempo e ajustes finos individuais. O nutricionista Daniel Chreem, especialista em nutrição esportiva, recomenda um período de adaptação nutricional entre 8 a 12 semanas (veja mais no quadro à esquerda).

Mas se você aprender a se exercitar em climas quentes e com a estratégia certa de nutrição e hidratação, o corpo se adapta rapidamente. O organismo bem treinado passa a ser mais eficiente e consegue antecipar o momento do aumento da temperatura central do corpo, reagindo cada vez melhor ao clima local. Diversas outras alterações internas passam a acontecer simultaneamente, do plasma do sangue à melhor capacidade de conservar sódio (o quadro “Metamorfose ambulante”, na página 75, explica tudo em detalhes). Até a sua percepção de esforço em alta temperatura melhora com o tempo, um sinal definitivo de que o calor já não é mais seu maior inimigo.

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Em todos os casos, seu corpo estará fazendo de tudo para regular sua temperatura – ele não está preocupado com metas ou recordes, mas, sim, em te esfriar de qualquer jeito. “Quando a temperatura interna aumenta demais, por produção própria de calor ou por fatores externos, alguns mecanismos param de funcionar ou diminuem sua atividade”, explica Ricardo Zanuto, educador físico, fisiologista e nutricionista esportivo. “Esse cenário dificulta a produção de energia, o que explica o fato de a fadiga chegar mais cedo”, completa. Ricardo alerta para dois perigos comuns que podem seguir o quadro: a hipertermia, que gera sintomas como confusão mental e perda de coordenação, e a hidratação em excesso, ambas com riscos sérios caso não sejam identificadas rapidamente e tratadas corretamente (veja como no quadro ao lado).

Foto: Matt Rainey.

Por complicações reais como essas, o calor passou a ser visto como algo a se evitar na corrida. Mas diversos estudos recentes têm revelado um lado ainda obscuro desta história. A Universidade do Oregon, nos Estados Unidos, por exemplo, testou por dez dias ciclistas em um protocolo de cem minutos de exercício diário no calor. O grupo teve um salto de 5% no número de VO2 máximo no fim do trabalho. Na Nova Zelândia, remadores encararam treinos em ambientes aclimatados (40ºC a 60% de umidade relativa do ar) e apresentaram melhora significativa na performance em uma competição. Estudos como esses têm levantado uma nova bandeira de que treinar no calor não apenas ajuda seu desempenho no próprio calor, como também melhora sua performance de forma geral.

Se para alguns o calor significa busca por sombra e água fresca e para outros é sinônimo de performance, em um ponto todos concordam: ele exige respeito e autoconhecimento. O aumento da temperatura é um convite para o cuidado redobrado nos treinos, nos ajustes de ritmos e na própria relação com o esporte. “Comece devagar e se teste, procurando um lugar onde possa fugir do calor se for necessário. Veja como você se sente e se pergunte se é isso mesmo o que você quer”, aconselha a ultramaratonista norte-americana Lisa Smith- Batchen, duas vezes vencedora da Badwater e campeã da Marathon des Sables, no Deserto do Saara.

Desafiar o calor com respeito levou Lisa a um insight comum em desafios extremos: o de que temos muito mais a oferecer dentro de nós do que imaginamos. Depois de somar grandes sucessos e enormes fracassos em provas quentes, Lisa é hoje treinadora e especialista em preparações do tipo. Seu principal conselho para seus alunos é tão profundo quanto simples: “Mantenha-se relaxa- do, mas focado no seu objetivo. Trabalhe muito duro, mas não deixe de ser flexível, sabendo que, no calor, tudo pode mudar em um segundo”.

Foto: Shutterstock.

Metamorfose ambulante

O que acontece com seu corpo quando o termômetro sobe

» SUA PELE

Para manter a temperatura em um patamar seguro, seu cérebro manda sinais pela corrente sanguínea que ativam o suor. É o sangue quente que expande os poros e causa a transpiração. O problema acontece quando condições climáticas, aliadas à sua temperatura corporal, fazem o suor logo evaporar. Ele é desperdiçado e falha em esfriar o corpo. Resultado? Desidratação.
OLHO VIVO: Quando você sua, está perdendo eletrólitos, peças-chave no funcionamento do seu sistema nervoso e do seu coração. A reposição correta (nem mais, nem menos) é essencial.

» SEUS MÚSCULOS

Sua musculatura demanda muito mais energia em condições quentes. Simples assim. Sem o sangue para a ajudar – ele já está muito ocupado com o suor, que sempre vence essa batalha interna –, os músculos vão procurar outros “caminhos”, além do oxigênio trazido pela corrente sanguínea. É nessa hora que eles fazem seu “tanque” esvaziar mais rápido.
OLHO VIVO: Músculos operando sob efeitos do calor não apenas são menos eficientes, como sofrem danos maiores – por isso as dores costumam ser mais presentes no dia seguinte a corridas “quentes”.

» SEU CÉREBRO

Como o hipotálamo é bastante sensível a mudanças de temperaturas corporais, ele reage ao calor enviando mensagens para seu sangue buscar caminhos mais periféricos do corpo. Se não funcionar, em caso de temperaturas extremas ou de alta umidade a fadiga mental não demora a aparecer. Resumindo, sua “cuca” também esquenta e seu sistema nervoso central passa a ficar confuso.
OLHO VIVO: Insistir em manter o corpo a todo vapor quando o cérebro já deu sinais de esgotamento é o caminho certeiro para problemas mais sérios.

» SEU CORAÇÃO

A conta é simples: se o cérebro manda mais sangue para a pele na tentativa desesperada de esfriar seu corpo, sobra menos para o coração. Como é preciso manter a batida, sua frequência aumenta – ele simplesmente precisa trabalhar mais para garantir a mesma quantidade de oxigênio. E mais: o próprio sangue quente, mostram estudos, estimula batimentos mais rápidos, um efeito combinado que só acontece em temperaturas elevadas.
OLHO VIVO: Tudo isso significa que sua performance vai diminuir no calor, assim como sua sensação física geral tende a ser bem menos prazerosa que em climas amenos – não lute contra, mas respeite e conviva com isso.

» SEU INTESTINO

Sempre que você se esforça demais, seu organismo prioriza algumas funções. Assim, o sangue circula de forma reduzida em órgãos como o intestino. O resultado é que a região, normalmente rica em sangue, trabalha sob pressão, e suas funções normais perdem em qualidade.
OLHO VIVO: É por isso que fica mais difícil digerir e absorver alimentos, assim como a chance de sentir enjoos aumenta consideravelmente.

Foto: shutterstock.

SINTONIA FINA

Segundo o ultramaratonista Marcio Villar, é preciso fazer alguns ajustes para se dar bem nas provas quentes

NA PREPARAÇÃO
Antecipe as condições da prova nos treinos e acostume seu corpo a lidar com calor de forma mais eficiente. Aumentar a hidratação nos dias anteriores, assim como a quantidade de eletrólitos ingeridos, é uma boa pedida. Tente se manter o mais “fresco” possível no período antes da largada e diminua seu tempo de aquecimento. “Procuro simular ao máximo a prova. Se vou correr em calor seco, uso sauna seca na preparação; se o clima é mais úmido, vou de sauna úmida.”

NAS EXPECTATIVAS
É importante prestar atenção no seu nível de esforço e entender que você simplesmente será mais lento nessas condições. Esqueça um pouco as referências comuns, como parciais de distância. Escute o seu corpo e observe a intensidade da respiração e o conforto. “Dia de prova é dia de ser feliz, a hora de sofrer é no treino. Quem vai te levar à linha de chegada é sua mente, seu corpo só acompanha.”

NA MENTALIDADE
Sua atitude precisa falar mais alto. No lugar de começar a arrumar desculpas ou se desencorajar, lembre-se de que todos estão sendo obrigados a lidar com as mesmas condições. Confie no seu treino e vá em frente. “Pode demorar um pouco mais para chegar, mas não há limites quando nos preparamos e acreditamos em algo. Visualizo a linha de chegada e corro o tempo todo pensando em como vai ser bom chegar lá.”

SEM INVENTAR MODA

Quando a sensação térmica e o esforço físico entram em cena, vale seguir a linha da cautela e da proteção

» ROUPAS Cores claras são bem-vindas na parte superior, a mais afetada pelos raios solares. Leveza de tecido também faz parte da pedida, assim como opções sintéticas (há várias tecnologias atuais que ajudam a repelir o suor). Evite opções agarradas ao corpo, que dificultam a circulação de ar.

» PELE Antes da corrida, aplique proteção com fator solar igual ou acima de 30. Além de cuidar da sua pele, isso ajuda a manter sua temperatura corporal mais baixa. Dependendo da situação, o uso de mangas longas ou manguitos diminui a incidência dos raios diretamente na pele e pode ajudar – se os acessórios passarem a esquentar demais, tire-os.

» PÉS Meias sem costura (que evitam o atrito) podem fazer a diferença em trajetos mais longos. Ao molhar o corpo, tome cuidado para não encharcar os pés, o que aumenta a chance de bolhas.

» ACESSÓRIOS Óculos escuros e uma proteção na cabeça são itens tão óbvios quanto essenciais. A escolha por viseira ou boné vai do gosto do freguês e do tipo de percurso. Enquanto um é mais ventilado, o outro permite abrigar esponja umedecida, por exemplo – e em casos mais extremos, cobrir orelhas e nuca é fundamental. Cintos utilitários e mochilas de hidratação também são opções a serem consideradas dependendo do nível do desafio.

PERIGOS À VISTA

Saiba identificar emergências quando o esforço passa do limite

EXAUSTÃO
CAUSA: A desidratação leva a um desequilíbrio eletrolítico.
SINTOMAS: Temperatura corporal central entre 39ºC e 40ºC, dor de cabeça, fadiga, náuseas e pele pegajosa.
TRATAMENTO: Descansar e aplicar compressa fria na cabeça/pescoço; restaurar o equilíbrio de sal com alimentos e bebidas com sódio.

DESMAIO
CAUSA: Muitas vezes provocados por uma parada súbita, que interrompe o fluxo de sangue das pernas para o cérebro.
SINTOMA: Perda de consciência.
TRATAMENTO: Após a queda, elevar as pernas e a pélvis para ajudar a restaurar o fluxo sanguíneo para o cérebro.

HIPONATREMIA
CAUSA: Ingestão excessiva de água, que dilui os níveis sanguíneos de sódio. Em geral ocorre após quatro ou mais horas de exercício.
SINTOMAS: Dor de cabeça, desorientação e espasmos musculares.
TRATAMENTO: Cuidado médico de emergência; qualquer tipo de hidratação pode ser fatal.

INSOLAÇÃO
CAUSA: Esforço extremo e desidratação prejudicam a capacidade do corpo em manter a temperatura ideal.
SINTOMAS: Temperatura corporal central de 40ºC ou mais, dor de cabeça, náuseas, vômitos, pulso acelerado e desorientação.
TRATAMENTO: Cuidado médico de emergência, imersão em água gelada e uso de fluidos intravenosos.