Maconha e corrida

Descubra o que dizem os novos estudos sobre o efeito da cannabis na performance

Ilustração: Vinicius Capiotti.

Por Gabriela Ingrid

Sensação de euforia, frequência cardíaca alterada, aquela necessidade de fazer um lanchinho. Se você treina, pode pensar que estamos falando dos efeitos da corrida. Poderia ser. Mas esses são também os efeitos da maconha no corpo. Foi justamente essa “intersecção” que fez cientistas estudarem as semelhanças entre a planta e o esporte, e os resultados comprovaram que as sensações provocadas pelos dois são ainda mais parecidas do que imaginávamos.

Até pouco tempo, acreditava-se que apenas as endorfinas liberadas durante o exercício eram responsáveis pela sensação de bem-estar no pós-treino. Mas uma pesquisa publicada em 2015 pelo periódico norte-americano Proceedings of the National Academy of Sciences mostrou que, na verdade, existem outros agentes em ação: os endocanabinoides, uma espécie de “versão natural” dos canabinoides (substâncias ativas da maconha) produzida pelo próprio organismo.

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Além de liberar opioides que agem no centro de motivação gerando uma euforia pós-treino – o tal “barato da corrida” –, exercícios de longa duração também aumentam os níveis de anandamida, um tipo de endocanabinoide que funciona como uma maconha endógena. O estudo ainda mostrou que a corrida reduz a ansiedade e a sensação de dor, efeitos semelhantes aos da planta. Em outras palavras, fumar maconha pode te colocar nesse mesmo estado antes mesmo de seu corpo começar a produzir toda a química desencadeada pelo exercício – sem, é claro, trazer todos os benefícios físicos proporcionados pelo esporte.

Não pretendemos fazer aqui qualquer apologia ao uso da maconha. No Brasil trata-se de uma substância ilícita e há riscos em seu consumo – especialmente quando a planta é fumada, o que vaporiza hidrocarbonetos cancerígenos, como o monóxido de carbono. O que buscamos é olhar com isenção para as pesquisas mais recentes e tentar antecipar dilemas futuros que serão vividos pelos esportistas aqui e no resto do mundo.

Ilustração: Vinicius Capiotti.

Uma dessas questões é: se a planta tem efeitos semelhantes aos da corrida, ela poderia melhorar o desempenho de um atleta? Segundo alguns estudos, substâncias químicas presentes na maconha possuem efeitos anti-inflamatórios e ajudariam a controlar dores e náuseas. É justamente esse efeito medicinal que tem chamado a atenção de um número crescente de corredores.

Durante décadas, a maconha esteve relacionada a lapsos de memória, movimentos mais lentos e desordenados, relaxamento. Mas foi seu poder medicinal que fez com que ela chamasse a atenção do meio científico. Em 1980, uma pesquisa inédita realizada no Brasil mostrou a eficácia do canabidiol (CBD) – que, ao contrário do THC, é uma substância não psicoativa das plantas do gênero cannabis — para fins terapêuticos em epiléticos: dos oito pacientes testados, quatro ficaram livres das crises e três tiveram melhoras significativas. Em 1996, a Califórnia (EUA) foi pioneira ao legalizar a erva para fins medicinais, uma decisão que até hoje abre portas para discussões nas mais diferentes esferas.

Quando o assunto chegou ao esporte há alguns anos, gerou polêmica e estimulou o debate entre autoridades e atletas, inclusive corredores. Vieram à tona algumas reportagens com ultramaratonistas do mundo todo e até corredores de distâncias menores que alegaram usar maconha antes e depois dos treinos. Em uma entrevista para o The Wall Street Journal, o ultramaratonista norte-americano Jenn Shelton disse: “A pessoa que é capaz de vencer uma ultra é alguém que consegue gerenciar a dor, não vomitar e ficar calmo. A maconha resolve essas três coisas”.

Mas será que os efeitos da droga se restringem a isso? E seriam esses os principais motivos pelos quais corredores usam maconha? Segundo Renato Filev, biomédico e doutor em neurociência pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que trabalha com o sistema canabinoide desde 2008 e faz parte do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), a planta tem efeitos agudos e de longo prazo que variam de acordo com muitos fatores: o tipo de ingestão (via oral, queima ou uso de vaporizadores), a concentração farmacológica e a genética da planta, além da forma como foi cultivada.

“Tudo influencia nos efeitos que você vai conseguir. Tem plantas que são produzidas com baixíssimo teor de THC e um alto teor de CBD e estão sendo usadas para evitar convulsões em crianças com epilepsia. Essa variedade tem o efeito de um anticonvulsivante que provoca sonolência”, explica Renato. “Agora, podemos pegar outra planta com altos teores de THC, cerca de 23%, que terá efeitos completamente diferentes.”

Um questionário online com enfoque medicinal foi feito nos Estados Unidos. Nele, vários pacientes responderam por que usavam maconha. O primeiro motivo apontado foi a dor. “A planta é usada para dores originadas no sistema nervoso, decorrentes de doenças neurodegenerativas, como espasmos musculares resultantes de esclerose múltipla ou do mal de Parkinson. A maconha reduz esses espasmos e relaxa o músculo, além de diminuir a dor”, diz Renato.

Com base nesses fatos, o biomédico afirma que os três principais motivos pelos quais os corredores usam maconha são: redução de dores, relaxamento, diminuição de ansiedade e/ou estresse pré ou pós-prova e diminuição de náuseas decorrentes de excesso de treino. Para ele, faz todo sentido ligar essas condições a uma ultramaratona, por exemplo. Longas distâncias em terrenos irregulares fazem com que os corredores sintam fortes dores nos músculos e nas articulações, além de enjoos, falta de motivação durante o percurso e tédio. Por isso, a maconha faria parte do kit de sobrevivência de vários ultramaratonistas.

Em distâncias menores, os consumidores afirmam que o principal motivo do uso seria o relaxamento. “Costumo fumar antes de correr nos fins de semana, quando não tenho hora para chegar em casa e posso aproveitar a paisagem”, diz uma corredora que prefere não se identificar e que roda no máximo 5 km por treino. “A droga me dissocia do mundo, me ajuda a focar apenas no som que estou ouvindo, no caminho. Acaba sendo uma prática até meditativa. Já tive algumas crises de ansiedade, mas a maconha e a corrida me ajudaram muito nesse aspecto”, conta ela.

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Outra corredora, que faz cerca de 42 km semanais, afirma que o consumo da maconha a ajuda a correr mais e melhor: “Nunca tive a necessidade de fumar todo dia, às vezes passo meses sem, em outros consumo mais. Mas no ano passado, durante o verão, corri algumas vezes depois de fumar. A sensação foi boa, senti que corri distâncias maiores sem me cansar tanto. E tive mais fôlego e foco”.

A maconha poderia, de fato, melhorar a performance? Para Elisaldo Carlini, professor da Unifesp e diretor do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), a planta não teria esse efeito. “Ela pode diminuir a tensão e a ansiedade, facilitando a descontração e até a distração. O que, na verdade, poderia atrapalhar a performance do atleta, que precisa de foco e concentração para correr mais e melhor.” Elisaldo ressalta, porém, que a planta tem um efeito analgésico que pode ajudar a lidar com as dores, especialmente no pós-prova.

Mas diversos especialistas ouvidos por esta reportagem acreditam que a maconha é capaz, sim, de dar uma forcinha para o corredor ir além. “Se você pensar que ela melhora a dor e os espasmos musculares, reduz a ansiedade e o estresse e as chances de náuseas e insônia são diminuídas, é justo dizer que a maconha pode beneficiar os atletas que se adaptam a ela”, diz Renato. “É por isso que ela é considerada doping em esportes de alta performance.”

Para entrar na “lista proibida” da Agência Mundial Antidoping (Wada), a substância deve ter o potencial de melhorar a performance, representar risco aos atletas e violar o espírito do esporte. Esses critérios fizeram com que a Wada colocasse, em 2004, os canabinoides na lista de substâncias proibidas. A decisão foi tomada após serem registrados diversos flagrantes de atletas que faziam uso da droga.

Se o número de esportistas que consumiam a planta já era grande há mais de dez anos, acredita-se que seja ainda maior agora. Hoje a maconha tem mais de 180 milhões de usuários, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), sendo a droga ilícita mais consumida no mundo. E já que nem os esportistas escapam dessa estatística, a Wada decidiu, em 2013, redefinir os níveis toleráveis de consumo pelos atletas. Antes, qualquer quantidade acima de 12 nanogramas/ml de urina já era considerada doping. Esse limite foi aumentado para 150 nanogramas/ml — mais de dez vezes acima do valor anterior.

Nós questionamos Ben Nichols, o representante da Wada, sobre a mudança dos níveis de canabinoides considerados doping. “A alteração do limiar definido pelo comitê executivo significa que atletas que usam essa substância durante competições continuarão sendo detectados, enquanto as chances de identificar o uso fora delas foram substancialmente reduzidas”, disse ele. E reforçou: a maconha é uma substância proibida somente durante as competições; a Wada nunca vetou seu uso fora das provas. Mesmo assim, Ben afirmou que esse limite pode ser mudado a qualquer momento.

Aqui no Brasil, as regras são as mesmas. Segundo o advogado Thomaz Mattos de Paiva, presidente da Comissão Antidopagem da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt), a Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF) é signatária do código de antidoping instituído pela Wada, e como a CBAt é vinculada à IAAF, segue os mesmos princípios. Dessa forma, a CBAt respeita a lista de substâncias proibidas pela Wada. “Existe a necessidade de um estudo aprofundado sobre a maconha pela própria Wada. Sei que há uma maior permissibilidade na utilização da planta, só que a CBAt entende que o uso fora dos parâmetros permitidos será considerado como infração à regra antidoping”, explica Thomaz.

E isso vale tanto para ultramaratonas como para corridas mais curtas. Edgard José dos Santos, diretor administrativo da Corpore, uma das maiores organizadoras de provas do Brasil, diz que a entidade obtém o alvará da Federação Paulista de Atletismo, que é subordinada à CBAt, que é quem promove os exames antidoping nas provas desse circuito. “Normalmente, são realizados testes quando a prova oferece premiação em dinheiro. Eles podem ser feitos logo após as competições ou na fase de treinos, de surpresa”, diz ele.

Ilustração: Vinicius Capiotti.

A redefinição da Wada sobre os limites aceitos de canabinoides faz parte de uma tendência de maior tolerância que paira sobre o mundo, inclusive sobre os atletas. Lutadores de MMA comumente fazem campanhas e pedidos para que a maconha seja regulamentada, assim como os jogadores da NFL, liga de futebol americano. A planta é uma das principais drogas usadas por esses esportistas, principalmente pelo seu poder anti-inflamatório, que os protege dos danos de uma contusão cerebral. “A violência é tão grande nesses esportes que os atletas poderiam se beneficiar dela. As associações deveriam rever o uso medicinal da cannabis, até porque o cenário desse mercado legalizado mudaria bastante o perfil de como a planta é encarada no esporte”, acredita Renato.

Um exemplo muito usado pelos atletas do que seria válido ou não nos testes é a política antidoping da Liga Mundial de Surf (WSL). A entidade tem posturas distintas para casos em que se busca melhoria de performance e aqueles em que há o uso das chamadas drogas recreativas, como maconha e cocaína. Em caso de teste positivo para a maconha, por exemplo, o atleta só pode ser punido a partir da terceira vez que é pego. Nas duas anteriores, ele é advertido e encaminhado para um programa de reabilitação. Por outro lado, com o uso de esteroides para incrementar o desempenho, basta o surfista ser flagrado uma única vez para que a liga aplique uma punição severa.

Don Catlin, fundador do Laboratório de Análise Olímpica da Universidade da Califórnia (EUA), disse publicamente que a inclusão da maconha na lista de substâncias proibidas nas Olimpíadas tem mais a ver com política e ética que com seu possível incremento na performance. “Há pessoas que dizem que características da maconha poderiam influenciar o desempenho do atleta. Mas são poucos os que realmente acreditam nisso, pode ter certeza”, disse ele. “O contexto todo é mais visto como abuso de drogas que como uma melhora de performance proporcionada pela droga.”

Talvez o uso da maconha por atletas seja mais comum do que imaginamos, apenas não há declarações formais sobre isso. Na Olimpíada do Rio, por exemplo, tivemos um fato curioso. Os dois maiores medalhistas de suas modalidades, Usain Bolt e Michael Phelps, são ou já foram usuários declarados da maconha. Prova determinante que ela aumenta a performance? Não. Mas é um sinal de que maconha e esporte se cruzam com mais frequência do que muitos admitem.

“É uma planta, um fitoterápico como qualquer outro, como a cáscara sagrada ou o boldo. Existem vários fitoterápicos que podem ter efeitos tão bons quanto os medicamentos alopáticos, com uma série de efeitos colaterais menores”, afirma Renato. Mas por ter uma variedade grande e diferentes formas de consumo, a maconha pode ter inúmeros efeitos no organismo — inclusive negativos. “Tudo é muito relativo, mas podemos elencar como sintomas ruins a sonolência e a sensação de “easy-going”, que deixa a pessoa mais devagar e distante”, diz Elisaldo.

O professor relembra que os principais efeitos da maconha são psíquicos e não físicos, e por esse motivo a planta produz alterações mentais boas e ruins. “Você pode ter desde uma boa ‘viagem’, um barato ou uma brisa, como dizem, até reações de pânico e terror. Isso depende muito da pessoa e do momento em que ela usa a droga”, afirma. “Geralmente, a maconha também retarda ou acelera os batimentos cardíacos, podendo levar até a uma taquicardia, fato que pode ser perigoso para quem pratica exercício.”

Uma advogada paulistana, que também é corredora e ciclista e fuma maconha com certa frequência, afirma que convive bastante com outros esportistas e que o uso ou não da droga nunca foi uma questão entre seus amigos. “Existe um estereótipo de que quem fuma maconha não é atlético, mas não é bem assim. Acho ignorante e preconceituoso julgar os outros por causa disso”, diz ela.

O biomédico Renato Liev acha que a questão vai muito além: “A dúvida sobre o uso e a liberação, seja no esporte ou na sociedade, é o grande problema. É preciso se informar e ter cada vez mais estudos. Pessoas que precisam fazer o uso medicinal e estão em situações bem mais graves não podem ter acesso à planta por conta da má política e da má gestão em torno dessa questão. Nós nos informarmos sobre o assunto é o melhor jeito de evoluir na questão.”

Se a maconha melhora ou não a performance, não sabemos ao certo. Mas o fato é: enquanto houver dúvidas em torno de seu uso, ela continuará na lista de substâncias proibidas no esporte e um assunto polêmico na sociedade.

Não viaje

Fique por dentro de alguns dados recentes sobre a maconha

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a maconha é a droga ilícita mais consumida do mundo. Nos últimos anos, experiências de legalização têm sido feitas com resultados promissores em lugares como o Uruguai e os estados norte-americanos do Colorado e Washington.

Portugal, que descriminalizou todas as drogas há 15 anos, é hoje o país com as menores taxas de consumo entre jovens da Europa.

Um relatório divulgado pela OMS em 2016 mostrou que 2,5% na população adulta brasileira usou cannabis nos últimos 12 meses, percentual que sobe para 3,5% entre os adolescentes – taxa semelhante a de outros países da América Latina.

Desde 2006, a lei brasileira estabelece que ninguém deve ser preso por ser consumidor. No entanto, como não há uma quantidade exata definida para separar usuário de traficante, essa confusão continua acontecendo (com prejuízo maior para negros e pobres).

Uma pesquisa realizada pelo Ibope em 2014 revelou que 79% dos brasileiros são contra a descriminalização da maconha.