Overtraining na corrida: a síndrome da fadiga crônica do atleta

Por Sam Murphy

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Ilustração: Vinicius Capiotti

Exigir demais do corpo e da mente não é perigoso apenas para corredores de elite. Pode acontecer com qualquer um. Veja como identificar sinais de alerta de overtraining, continuar correndo e ter uma saúde cada vez melhor.

Overtraining: a síndrome da fadiga crônica do atleta

Tenha você começado a treinar recentemente ou seja dono de uma coleção de medalhas, certamente busca correr e viver melhor com o esporte. Mas e se, mesmo com toda a dedicação, a coisa não estiver evoluindo? Pode ser que, ultimamente, seu organismo esteja mais vulnerável a doenças e infecções ao seu redor. Ou que esteja mais difícil evitar dores e lesões. Ou ainda que você fique exausto durante o dia, mas não consiga dormir à noite. E aquele recorde pessoal vai ficando cada vez mais distante…

Overtraining, queda do desempenho esportivo sem aparente explicação, esgotamento… chame do que quiser; todos esses nomes equivalem à síndrome da fadiga crônica do atleta.

Treinar regularmente, mas sem prestar a devida atenção a aspectos como nutrição, sono e recuperação – somado a não conseguir conciliar as exigências da vida estressante e atarefada –, pode estar levando você a um esgotamento.

“Estamos diante da ‘profissionalização’ do atleta amador, com aumento em intensidade, volume e seriedade, porém sem eliminar os fatores estressantes da vida enfrentados por quem não é profissional”, afirma Greg Whyte, ex-atleta olímpico e professor de ciência do esporte. “E esses fatores podem interferir muito mais nos treinos dos amadores que nos dos atletas de elite, que podem focar completamente no esporte.”

O problema não é só treinar demais, mas, sim, o excesso de tudo que nos cerca. E a distorção cruel dos fatos é que muitos corredores interpretam seus sintomas como uma indicação de que precisam pegar mais pesado no treino em vez de dar um tempo, o que os prende em um círculo vicioso que piora o problema.

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Overtraining

“Muitos termos são usados para indicar essa patologia”, afirma Charles Pedlar, cientista do esporte na Universidade de St. Mary (EUA). “Síndrome de overtraining é o mais comum, embora também se ouça falar em síndrome da queda do desempenho inexplicável.”

Tim Noakes, cientista do exercício renomado mundialmente, da Universidade de Cape Town, na África do Sul, abordou essa patologia em detalhes em seu livro The Lore of Running [em tradução livre, A Sabedoria da Corrida]. Publicado pela primeira vez em 1985, é um dos poucos livros que reconhece o overtraining e que também destaca a falha fundamental no modo como muitas pessoas abordam o treino.

Tim escreveu: “Quanto mais pesado treinarmos, mais rápido correremos, e ignoramos as evidências de que isso não é verdade. Fazemos treinos mais pesados e temos pior desempenho na corrida, então, em um ato supremo de estupidez, interpretamos nossas provas ruins como indicadores de que não treinamos o suficiente”.

A observação de Tim vai ao cerne do problema: reconhecer quando o benéfico ciclo de treino – estresse, recuperação, adaptação e aperfeiçoamento – termina e o de treinamento excessivo começa. “Há uma diferença muito grande entre overtraining e excesso de treino no curto prazo, ou overreaching”, afirma Greg. “Overreaching é o que tentamos fazer nos treinos: estressar nosso organismo para provocar adaptação. Assim que o estresse cessa, temos uma supercompensação, e o atleta começa a se movimentar bem.”

Se feito de modo certo, o aumento gradativo na carga de treinos vai dar resultados. Mas essas semanas cada vez mais pesadas devem ser seguidas por períodos de descanso para combater a dor e a fadiga e dar ao corpo a chance de se adaptar. Quando o corpo não tem esse descanso, o overtraining mostra sua cara, que é bem feia.

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Testes de estresse

Se você estiver preocupado com um possível overtraining, em primeiro lugar tente se reajustar. “Duas semanas é o tempo de recuperação padrão que se deve aguardar antes de fazer um diagnóstico”, explica Charles. “Muitos atletas não querem ouvir isso, principalmente se têm alguma prova se aproximando, mas não respeitar esse tempo pode levar a um período de molho muito mais longo.”

Como muitos dos sintomas iniciais do overtraining são semelhantes aos efeitos naturais de uma carga alta de treinos, não se pode fazer um diagnóstico antes de a pessoa repousar durante esse período. Além disso, o descanso permite verificar se não há nenhuma razão médica por trás da queda do desempenho. “É fundamental excluir qualquer possibilidade de haver um mecanismo patológico antes de se considerar a síndrome”, esclarece Charles.

Se não houver nada incomum do ponto de vista médico e o período de recuperação de duas semanas não trouxer seu desempenho de volta aos níveis anteriores à queda, o que se deve fazer? Como saber se você tem algo mais grave que uma simples fadiga?

Sintomas de overtraining

“É muito difícil determinar em que momento os sintomas se tornam um problema clínico”, afirma Charles. “Sonolência diurna e letargia, perda de peso e fome constante são bons indicadores. Mas o ponto principal é se o seu desempenho é o que você espera, com base em seu estado.”

Outros sintomas podem incluir anemia, desidratação crônica, desequilíbrios hormonais, dores misteriosas, perda do apetite, diminuição da libido, arritmias cardíacas e “lentidão nas pernas”, mas isso varia para cada pessoa. “Repetidas infecções das vias aéreas altas são outro bom indicador. E há os distúrbios do humor: atletas com overtraining relatam baixa energia, letargia e raiva. De uma hora para a outra, deixam de gostar de algo que antes adoravam.”

Organismo estressado

Os sintomas psicológicos podem advir de problemas com o sistema nervoso parassimpático e simpático. Quando o organismo está estressado, o sistema nervoso simpático é acionado: ele movimenta o sangue pelo corpo e aumenta a frequência cardíaca. O sistema parassimpático faz o contraponto, ou seja, faz o organismo voltar ao estado de equilíbrio; porém, em um ciclo de estresse excessivo e recuperação inadequada, esse equilíbrio não funciona corretamente. “Como o sistema nervoso central tem influência sobre o cérebro e sobre a fisiologia do organismo, um atleta com overtraining pode achar que sua mente está trabalhando demais. Isso afeta o sono e a capacidade de concentração, bem como o humor”, explica Charles.

Dessa forma, se você estiver com sintomas como esses, talvez seja necessário consultar um profissional para confirmar o diagnóstico. Um exame de sangue mostra resultados como deficiência de ferro ou de hemácias. “Outra área que deve ser avaliada é o estresse oxidativo”, alerta Charles. O organismo é constantemente atacado por radicais livres, que são produzidos, de modo particular, durante a atividade física. Esses radicais livres danificam células e o DNA, e a incapacidade de tolerá-los é classificada como um estado de estresse oxidativo.

Panorama geral

Embora seu desempenho seja uma espécie de teste para identificar a síndrome, é preciso ampliar o foco para achar e abordar as causas subjacentes. “Para evoluir, o corredor precisa treinar pesado, mas também pensar em como se alimenta, dorme e se recupera”, afirma Greg. “Todos esses aspectos são relevantes, mas quando as coisas começam a dar errado, o foco tende a ficar em um só fator: a carga de treino.”

E embora um desequilíbrio entre carga de treino e recuperação possa ser a causa primária, muitos outros fatores devem ser considerados.“Quando eu detecto overtraining em corredores, invariavelmente não é apenas o volume de treino que está causando problema; são os outros fatores de estresse em sua vida que fazem com que o volume de treino seja um problema” revela Greg.

Podemos lidar com o estresse provocado pelo aumento de volume e intensidade de treino se pudermos nos recuperar. Mas os estresses podem vir de diversas áreas. Além do estresse fisiológico do treino, há muitos fatores psicológicos e sociológicos. Inclusive, hoje, diversos especialistas acreditam que para se ter uma recuperação total é preciso levar todos eles em consideração.

“Entre os profissionais, costuma haver um aumento de incidência de overtraining antes de campeonatos importantes”, confirma Greg. “Isso por causa do estresse psicológico da competição.”

E, apesar de não sermos atletas de elite, temos várias questões que nos preocupam. “Como a condição financeira, provas, relacionamentos, trabalho – e é preciso lidar tão bem com esses fatores estressantes quanto com os físicos”, comenta.

Como identificar as causas?

Comece analisando sua vida. Observe todas as forças externas que gravitam em torno dos seus treinos e as avalie, como faria com suas corridas.

“Nós temos uma visão bastante ampla da vida do atleta fora do treino. Observamos o que está acontecendo no campo psicológico e se ele está sob pressão social. Ao fazer isso, identificamos potenciais áreas de problemas e soluções a partir do foco problemático, para lidar com o desequilíbrio”, conta Greg.

Mais aumentos

Seja para elite ou amadores, especialistas passaram a considerar a síndrome de overtraining como um problema maior e mais prevalente do que se pensava.

Historicamente, é provável que o caso mais famoso seja o de Alberto Salazar, cujas três vitórias consecutivas na Maratona de Nova York, nos anos 1980, foram seguidas por uma década de queda de desempenho, apesar – ou é mais provável que seja devido a – de seu treino pesado. Quando ele se aposentou, em 1998, mal conseguia correr por 30 minutos. “Mais de 60% dos atletas de endurance serão afetados em algum momento da sua carreira”, diz Greg. “Isso tem sido algo corriqueiro no esporte de elite há quase três décadas.”

O fato de o overtraining também ter aparecido, recentemente, entre ultramaratonistas talvez seja resultado da gradativa mudança pela qual a modalidade vem passando. Ela passou de um cenário de nicho, com grupos pequenos, para um esporte profissional. Prêmios em dinheiro, acordos de patrocínio e competições intensas têm exigido mais dos atletas. A maioria dos principais ultramaratonistas supervisiona o próprio treino. E muitos deles têm que conciliar compromissos da vida e fatores estressantes com seus treinos e competições.

Seja para terminar um evento de 160 km ou melhorar seu tempo nos 10 km, sua firme determinação é que faz com que você consiga realizar a prova. Mas também é o que pode te colocar na zona de perigo. Greg resume essa atitude mental da seguinte forma: “Se pouco é bom, logo muito deve ser melhor; mas se muito não for melhor, isso significa que eu tenho que fazer ainda mais para que isso seja verdade”. Esse é o círculo vicioso mencionado anteriormente. Vale a pena saber se você, assim como muitos corredores, tem propensão a pensar dessa forma.

Olhar de perto

Com esse intuito, treinadores experientes procuram certas características que os alertem para uma predisposição ao overtraining. “Há quem faça tudo ao pé da letra. Pois tende a não ouvir o que seu corpo está dizendo”, afirma Charles. “Essas pessoas talvez precisem de um dia de descanso ou pegar leve em um treino. Mas sua abordagem perfeccionista mostra que o desejo de seguir a programação é maior. E também observamos o oposto em atletas imprudentes, que constantemente fazem treinos puxados, mas são inconsistentes em termos de nutrição. Temos esses dois extremos que podem levar à síndrome.”

Para garantir que você não siga esse caminho, dê um passo para trás e não observe a corrida isoladamente, mas, sim, como ela se encaixa no cenário maior que é a sua vida. “É louvável se dedicar muito ao esporte que você pratica. Mas a postura mais inteligente é não pensar apenas em como você organiza seu treino. Como também de que forma você estrutura sua vida e garante que sua recuperação seja adequada”, conclui Greg.

Assim, indo um pouco além, é sempre bom lembrar dos motivos pelos quais correr te fazia feliz. Se você focar no valor da sua relação com o esporte, a probabilidade de exagerar em algo bom será menor.