Na fatia de chocolate

Por Patricia Julianelli – Redatora-chefe da Runner’s World Brasil

Seis em ponto: levanta com o choro do filho, retira o menino do berço, troca a fralda, dá mamadeira. Brinca, rola no chão, canta. A babá chega. Hora da academia: 40 minutos cravados. Banho em 15. Café em 10. Checklist em 5. Pega o carro e chega ao trabalho. Enfim, começa mais um dia. Não sei se foi o Felipe que acelerou na mamada, eu que pulei a série de braços ou o banho que foi de gato, mas dia desses saí adiantada de casa, só percebi no carro, exatamente ao cruzar a rua Bernarda Luiz. Meio que por instinto, quebrei a direita e depois direita e direita de novo. Desacelere e logo estava na frente dela: a casa em que nasci, onde catava tatu-bola no jardim, me refrescava na piscina regan, colhia limão do pé.

Fiquei alguns minutos parada, só olhando a fachada. Mudou com o tempo, está mais moderna. Moderna até demais, nem parece que mora gente lá dentro, pensei. E fiquei ensaiando a abordagem. “Desculpe incomodar, meu nome é Patricia, eu passei minha infância aqui. Será que eu poderia entrar?” Você, caro leitor, abriria a porta? Pois a simpática moça abriu. Simpática até demais. Mais parecia uma recepcionista.

Na sala de visita, no lugar dos cafés com bolo de chocolate quentinho, existe agora uma fria recepção, com cimento queimado no chão. O jardim da farra, do banho de esguicho, dos pés sambando na espuma de sabão agora era uma sala de reunião ao ar livre, descolada, cool. Mas quem foi que deixou levar trabalho para a minha casa?

A visita ao passado foi arquivada e segui com a vida. Até o dia em que, ao entrar na casa da minha mãe, fui fisgada por aquele cheiro irresistível. Na cozinha, lá estavam minha mãe e minha sobrinha, de avental, lambuzadas, felizes da vida. A receita no forno era da Joana, nossa vizinha, esse, sim, o melhor bolo de chocolate do mundo. Daquele que faz a gente esfregar as mãos de excitação enquanto assa. E, quando sai do forno, salivar ao cortar o pedaço que, de tão fofinho, despedaça na mão.

Quando dou por mim, estou novamente na sala da casa da Bernarda Luiz. Joana surge da cozinha com seu avental de margaridas e eu corro desembestada. “Desse jeito vou derrubar o bolo. Cuidado, menina, tá quente!”,avisa. Tento alcançar o bolo e levo um peteleco no dedo. Eis que o bolo desce até as crianças e eu pego um pedaço. Ainda dá para ver uma fumacinha saindo dele, de tão quente.

Em boa parte do tempo, faço questão de ter uma alimentação gostosa e nutritiva – gosto pessoal e questão de princípios. Mas às vezes abro uma brecha na vida para os alimentos saborosos, aconchegantes, que nos abraçam como um edredom no inverno. Que nos fazem voltar no tempo. Aí não tem bolo com açúcar de coco, farinha de amêndoa e cacau em pó orgânico. Quero a doçura da infância, feita de açúcar União, chocolate do padre, farinha Dona Benta. Só um pedacinho basta. Uma fatia de alegria.