Corrida na veia

Na família Miranda, o esporte é uma paixão que passa de uma geração para a outra

Sergio e Seu João. Foto: Alex Batista.

Por Petra Monteiro

“Meu pai é meu ídolo, meu herói; gostaria de ser para minha filha metade do que ele foi para mim”. Sergio Miranda, de 54 anos, hoje corredor, treina sério, segue planilha à risca e tem tempos invejáveis na corrida. Mas, para ele, o verdadeiro atleta é o pai, seu João, de 82 anos, que acorda cedo todo dia para treinar e participa de pelo menos uma prova por mês. “E o melhor, faz tudo isso por prazer”, diz Sergio.

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A corrida sempre uniu pai e filho. Além de fazer com que mantenham uma grande amizade e se falem todos os dias sobre treinos, no passado dividiam uma sadia disputa por tempos em provas. “Tudo começou com uma simples brincadeira. O Sergio corria outras distâncias, até que resolveu partir para as meias maratonas na tentativa de me superar”, afirma seu João, orgulhoso da sua marca de 1h30 aos 62 anos.

Sergio começou a correr ainda adolescente tendo o pai como inspiração. “O entusiasmo dele foi me contaminando.” Em 2010, ele entrou para a assessoria esportiva MPR com a meta de correr a meia maratona de Amsterdã daquele ano em 1h29. “Completei a prova em 1h28min40. Chorei muito”, conta.

O amor pela corrida e o apoio da família motivaram Sergio a partir para seu maior desafio: a maratona. Estreou em Berlim em 2012, já com um tempo invejável: 3h16min25. “Achei que podia melhorar, e no ano seguinte consegui a marca de 3h05 em Chicago.” Não demorou muito para ele sonhar com o sub-3h. Mas fechou a Maratona de Chicago em 3h04.

No fim de 2015, passou a treinar para a Maratona Internacional da Califórnia e fez mudanças no treino que, segundo ele, fizeram toda diferença. “Associei aos treinos de corrida aulas de pilates e sessões de fisioterapia. Tive o acompanhamento de um nutrólogo, que me ajudou a perder 3 kg, e, com o fisioterapeuta, houve muito estudo de mecânica e fisiologia da corrida. No dia 12 de dezembro de 2015, terminei a prova em 2h58min33. Eu até hoje me arrepio quando lembro o momento da chegada. Foi muito emocionante. No meu último treino na praia, antes da prova, fiz 21 km em 1h30. Isso me deu muita esperança”, diz.

Foto: Alex Batista.
Foto: Alex Batista.

Ele também acumulou experiência depois de algumas maratonas, conhecia mais seu corpo e sabia lidar melhor com as adversidades. No dia D, como chovia muito, usou três camadas de roupa, capa de chuva, cobertor envelopado e levou comida. “Tinha o plano de passar a meia em 1h29, fiz em 1h28. Muito tranquilo e sem dores.” No Km 28, sua esposa o aguardava com um reforço de carboidrato. “No Km 35, meu rendimento estava caindo e tentei pensar na força que todos estavam me dando. Quando cheguei ao Km 38, comecei a correr quilômetro por quilômetro pensando em alguém da família e prossegui com eles.” Quando Sérgio chegou ao Km 40, tinha apenas dez minutos para fazer os 2 km restantes e atingir sua meta de tempo. “Minha mulher estava nos metros finais, gritando para me dar força. Foi tudo perfeito.”

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O desempenho de Sergio na corrida torna-se ainda mais impressionante quando conhecemos sua rotina fora das pistas. Ele é cirurgião da face no hospital Albert Einstein e faz operações quase todas as manhãs. “Tenho que acordar muito cedo e trabalho muito. Conciliar treinos, família e vida social é algo quase artístico”, brinca. Com a rotina do hospital, que começa às 7h da manhã, ele sempre teve que madrugar para correr antes do expediente. “Vou direto do treino para o centro cirúrgico. Meus amigos já se acostumaram a me ver chegando ao hospital de shorts e camiseta. A arte está em fazer as coisas acontecerem, apesar do trânsito, horários, banho, roupa e compromissos.”

Com toda essa correria, o apoio da família sempre foi fundamental. O pai, além de ídolo, é fã. A mulher e a filha estão sempre presentes fazendo o suporte de hidratação durante as provas e treinos. “Elas vão de trem, bicicleta, metrô. Sempre estão em alguns pontos me dando uma garrafa de água com algum suplemento.” O esporte já está no DNA, e com sua filha não poderia ser diferente. “Ela é a melhor atleta da família, nadadora de primeira. Sempre me incentivando. Minha família é maravilhosa, e meu pai, com certeza, é a grande inspiração.”

Aos 82 anos, seu João se descreve como “um veteraníssimo corredor movido a desafios.” Ele começou a correr aos 18 anos, ao ser convocado para servir o exército, no segundo batalhão de Engenharia. “Já gostava de correr desde criança e foi minha opção para o treinamento físico obrigatório militar. Nunca mais parei.”

Seu João não inspira apenas sua família, ele ganhou uma corrida em seu nome, o Desafio de Corridas João Branco de Miranda, que ocorreu no clube Paineiras do Morumbi, em São Paulo. Foto: Alex Batista.
Seu João não inspira apenas sua família, ele ganhou uma corrida em seu nome, o Desafio de Corridas João Branco de Miranda, que ocorreu no clube Paineiras do Morumbi, em São Paulo. Foto: Alex Batista.

Hoje seu João é o exemplo de Sergio, assim como seu pai fora para ele. “Meu pai percorria 100 km andando e, anualmente, umas duas ou três vezes, eu o acompanhava com muita dificuldade.” Agora seu João é quem motiva esposa, filhos e netos. “Eu me considero um exemplo não pelos meus feitos no atletismo, mas, sim, pela longevidade e dedicação.”

Seu João é um privilegiado: nunca sofreu nenhuma lesão grave. “Corro sem medo de me machucar, o que me leva muitas vezes a vencer outros corredores da mesma faixa e tecnicamente superiores”, diz. Além da genética, ele conta com a ajuda da regularidade nos treinos e da boa alimentação. “Não faço uso de bebidas alcoólicas e nunca fumei. Talvez por isso consiga participar de 12 a 15 provas por ano. Em São Paulo e no Guarujá tenho sido o 1° da faixa etária.”

João se define como um grande entusiasta das corridas de rua: mesmo quando não está competindo, vibra com o desempenho dos amigos. E é com brilho nos olhos que ele garante: enquanto permitirem, vai continuar levantando cedo para correr. Essa é sua receita da felicidade.