Infiltrado: o viajante brasileiro que correu na Coreia do Norte

Tiago não era um corredor, mas entrou no país mais secreto do mundo como um maratonista

Por João Ortega

Deitado na cama do hotel, enquanto o sono parecia um sonho distante – haja diferença de fuso horário! –, Tiago Ricotta escutava com curiosidade o canto de seu colega de quarto. A televisão transmitia um dos hinos norte-coreanos que exaltam o regime do líder Kim Jong-un, e Tim, um jovem nascido na Flórida que estava pela quarta vez na Coreia do Norte, acompanhava a canção, que sabia de cor.

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Na manhã seguinte, tanto o brasileiro como o comunista norte-americano iriam correr os 10 km na Maratona da Coreia do Norte, na capital Pyongyang. Até o horário da prova, o governo proibia qualquer estrangeiro de sair do hotel sem a presença dos guias locais. Restava a Tiago olhar pela janela e contemplar os edifícios padronizados e repetitivos que cobrem toda a cidade – uma vista curiosa para um viajante que é arquiteto de formação. “Como eu vim parar aqui?”, pensava o cor­redor amador de 31 anos, enquanto o filme do ano anterior começava a passar pela sua memória.

Dos 42 ao 10, com obstáculos

Antes de se tornar corredor, Tiago já era um viajante por natureza. São 40 países na mala, em sete “mochilões” pelo mundo. “Eu simplesmen­te escolho um ponto do pla­neta e vou”, conta o arquiteto. Chegou um momento em que viajar para novos destinos se tornou um desafio, e aí surgiu a ideia de desbravar a Coreia do Norte, a nação mais misteriosa do mundo.

A entrada no país, para o público em geral, é restrita a eventos oficiais. A mara­tona é o maior entre esses eventos e traz cerca de 20% de todos os estrangeiros que entram na Coreia do Norte anualmente. A prova do dia 9 de abril deste ano se mostrou a melhor porta de entrada para Tiago.

“Comecei a praticar a corrida justamente para estar na maratona”, explica. Exatamente um ano antes do evento, o arquiteto iniciou os treinos para disputar os 42 km na Coreia do Norte, mas sem a preparação ou instrução necessárias. “Na minha cabe­ça, era só sair correndo que ia dar tudo certo.” Não deu: com menos de três meses de treino, começaram a surgir le­sões. “Quando fui ao médico, ele acabou comigo”, conta Tiago. O especialista reco­mendou reforço muscular, uma assessoria de corrida e, de quebra, três meses longe das ruas para recuperação.

Mesmo seguindo o trei­namento correto – e vendo os tempos baixarem –, outra lesão por esforço repetitivo acabou com seus planos de completar uma maratona que agora já estava apenas um semestre à frente. A solução foi baixar a meta: correr a prova de 10 km, que também faz parte do evento oficial. “Foi a melhor decisão que eu tomei”, diz Tiago.

Cruzando a fronteira

Para entrar na Coreia do Norte, não basta fazer a inscrição para a maratona e aparecer na alfândega. É preciso fechar um pacote com uma das três agências de viagem credenciadas pelo governo e fazer uma parada em Pequim, na China, para uma palestra de duas horas com as ins­truções bem detalhadas do que não se pode fazer nas terras de Kim Jong-un (alguns itens abaixo, em As regras da casa).

Depois de assinarem um termo de responsabilidade, os estrangeiros são levados por um trem noturno para a fronteira chinesa, onde um ônibus norte-coreano busca os passageiros para cruzar a ponte que passa sobre o rio Yalu e leva até a entrada do país. Ali, todos são questio­nados e têm seus pertences e celulares revistados. Por último, os turistas embar­cam em um Antonov An-24, um modesto avião soviético da década de 1960 – segun­do o brasileiro, “a melhor tecnologia em voos domés­ticos na Coreia do Norte” –, até chegarem a Pyongyang.

Na excursão de Tiago, eram cerca de 300 es­trangeiros, incluindo outro brasileiro e, é claro, Tim, o norte-americano que usava em todas as suas peças de roupa uma referência a algum regime comunista (uma boina da União Sovié­tica, uma mala com a ban­deira de Cuba e a jaqueta da Coreia do Norte). Alguns estreantes, outros vete­ranos – mas todos com o anseio de entender melhor a vida dentro de um país que fecha as portas para o resto do mundo.

10km de liberdade

O avião pousou em Pyong­yang, Tiago chegou ao hotel definido pela agência e, no devido tempo, a cantoria norte-coreana da TV e do colega de quarto cessou. Logo amanheceu e chegou a hora da largada da prova: o único momento da viagem em que o arquiteto estaria livre de guias, em meio à multidão, com a possibilida­de de conhecer como era aquele país de verdade.

A primeira surpresa do brasileiro foi positiva: mais de 40 mil norte-coreanos ovacionavam os corredo­res das arquibancadas do estádio Kim Il-Sung, onde o trajeto começa e termina. O evento não atrai apenas tu­ristas curiosos e corredores estrangeiros. Os morado­res locais se mobilizaram naquele dia ensolarado para a largada e a chegada dos participantes com a motiva­ção, também, de celebrar o aniversário do ex-líder e fundador do regime, que dá nome ao estádio.

A surpresa que veio a seguir já não se mostrou tão receptiva. Por mais que o público fizesse barulho pelos corredores enquanto assistiam à prova de longe, qualquer interação mais próxima, nas ruas por onde o trajeto passava, era, em geral, ignorada pelos norte-coreanos. “Se você não é norte-coreano na essência, é considerado uma pessoa de segunda classe”, diz Tiago. A impressão que ficou para o brasileiro é que o sistema como um todo faz com que os cidadãos apoiem o líder e o país acima do resto do mundo. “Todo mundo tem casa, mas para quem se mostrar mais fiel ao regime é cedida uma casa melhor”, exemplifica o arquiteto.

Quem também compa­receu em peso – e com destaque – foram os atletas locais. Entre os dez melho­res tempos dos homens na maratona, 8 foram norte-coreanos, incluindo o ven­cedor da prova: Pak Chol. Na categoria feminina, 9 corredoras locais ficaram nas primeiras dez posições, e no lugar mais alto do pódio subiu a norte-coreana Jo Un-ok.

Olhando para cima duran­te o trajeto, não se via parte do céu, tamanha a quantida­de de bandeiras da Coreia do Norte penduradas sobre a rua . À frente, surgiam monu­mentos a cada meio quilôme­tro, quebrando a monotonia do resto das edificações. O paulistano completou os 10 km de Pyongyang em 1h10, entre fotografias da ci­dade e uma ou outra bronca que recebeu dos militares.

No dia seguinte, a longa viagem de volta para o Brasil o esperava – não sem antes passar por uma minuciosa revista. Tiago é uma das pou­cas pessoas que vivenciaram a sensação de estar dentro do país mais secreto do mun­do. E, por causa dessa fixa­ção por conhecer os lugares mais improváveis, ele acabou descobrindo uma nova forma de viajar: correndo.

As regras da casa

A entrada na Coreia do Norte por estrangeiros é extremamente controlada e só é permitida após a assinatura de um termo de compromisso em relação a alguns itens de importância para o governo. Entre eles:

  • Fotos, documen­tos, aplicativos e tudo o que estiver no celular ou com­putador do visitan­te serão checados na entrada e na saída do país e, possivelmente, excluídos.
  • É permitido tirar fotos dos monu­mentos aos líderes e ao regime, desde que não se corte nenhuma parte da figura no quadro. O monumento preci­sa estar completo na fotografia.
  • É permitido entrar com objetos cultu­rais ou religiosos, mas eles serão fi­chados e precisam estar em posse do turista na hora de sair do país.
  • É proibido tirar fotos dos militares, estejam eles na construção civil, guarda ou qualquer outra função.
  • É proibido tirar fo­tos de edificações militares.
  • É proibido estar em espaço público desacompanhado de um guia local ou sem uma autori­zação oficial (exceto durante a corrida).

E a punição padrão por descumprir alguma das re­gras? Quinze anos em um campo de concentração.

Fotos por Tiago Ricotta.