O dia da verdade

Diretora de conteúdo da RW Brasil conta a emoção de todo o percurso da Maratona de Berlim

Por Andrea Estevam, em busca do seu RP com a Adidas Brasil

Acordo com o despertador e me surpreendo pela noite bem dormida. O remédio pra gripe deve ter ajudado, penso. Levanto sem a dor de cabeça da véspera e executo o plano: aplico as fitas kinesio no posterior e na parte interna da coxa esquerda (onde o resto da lesão insiste em existir), visto roupas e tênis separados na poltrona, coloco dentro do Flipbelt os géis e cápsulas de sal, já sabendo exatamente quando devo ingeri-los, e desço para o café da manhã.

Novamente, sigo o planejado. Pão e queijinho magro, suco de maça antipiriri, café puro. E preparo meu amuleto, que antecedeu 99% dos meus treinos para a maratona: pão com pasta de amendoim, que comerei 15 minutos antes da largada. É confortante seguir um roteiro – elimina boa parte da ansiedade e economiza tempo. Em vez de nervosa, me sinto animada, entregue. É como se as engrenagens do destino finalmente começassem a se mover.

Na base da Adidas Runners, pertinho da largada, tem música, comida, bebida, gente bonita, banheiros. Tem também uma “cola” com as parciais para quem quer fazer um determinado tempo. Pego a “tatuagem” das 3h45min e grudo no antebraço com um misto de coragem e dúvida. Meu sonho agora está escrito em minha pele com letras vermelhas e pretas. Era um objetivo ousado, que implicava em baixar meu tempo anterior em quase 9 minutos.

No caminho para a largada, uma parada na moita para um último xixi me rende uma mordida de abelha na coxa. Apesar da dor, rio da situação. Me espremo entre outros milhares e milhares de corredores, esperando o estouro da boiada, ao lado do pacer (coelho ou marcador de ritmo) com a bandeirinha de 3h45. Tudo o que preciso fazer é grudar nesse cara e não soltar por nada. E eis que… lá vamos nós!

Começa a maratona

Sim, a Maratona de Berlim é uma das mais rápidas do mundo, com avenidas largas e planas. Mas são quase 45 mil pessoas correndo em um mesmo trajeto. É gente pacas, e a muvuca é grande. Lá pelo km 5, desisti do pacer, porque dava muito trabalho desviar das pessoas e ainda tentar ficar perto dele (que também estava desviando de pessoas). “Só não posso deixar ele me ultrapassar”, pensei, antes de nunca mais vê-lo.

A estratégia traçada pelo coach era aquecer nos primeiros 3 km e depois manter um ritmo de 5’17” até o km 27 – meu pace provavelmente cairia nos 15 km finais e dessa forma eu teria margem para fechar em 3h45, com um ritmo médio de 5’20”. De certo modo, até consegui. Só que a hidratação em Berlim é péssima. As mesas com água e isotônico surgem sem aviso, às vezes do lado direito, às vezes do esquerdo, às vezes em ambos. Você vai correndo, cansada & burra, tentando achar um caminho entre os corredores sem pisar no calcanhar de ninguém, e de repente elas estão do seu lado. Você (e os outros) faz uma curva radical para a lateral, sem pisca-alerta, atrapalhando quem vem atrás e trombando com quem já bebeu água e quer retornar pro meio da avenida. Sou uma iniciante, mas em minha única maratona anterior, em Nova York, tudo era mais sinalizado – e fluido. E assim, meu pace ficou bem doidão: entre 5’10 e 5’15 nos quilômetros sem hidratação, e de repente uns 5’30” quando eu bebia água (e bebi bastante, porque estava calor).

Minha mente reforçou o pace montanha-russa. Se eu corria um quilômetro a 5’05”, passava o próximo me preocupando se iria quebrar e corria a 5’25 – para então achar que estava muito lenta e fazer o próximo quilômetro a 5’07. Bem louca! Meu gráfico de ritmo ficou meio eletrocardiograma.

E nesse acelera e breca e acredita e treme e dói, cheguei aos 21km cerca de um minuto atrasada em relação a minha cola. E, bem cansada, tive que não deixar a montanha-russa despencar demais. Nossa, foi muito duro. Entrei na tal da “caverna da dor” (pain cave) em vários momentos. De lá me tiraram momentaneamente um corredor que arriscou uma dança do ventre para fazer graça para os espectadores; o pensamento em minha filhota e no maridão parceirão; um batuque desengonçado de um grupo de gringos bem-intencionados, surrando os tambores; uma roda de capoeira; a lembrança de todo mundo que me ajudou, apoiou e inspirou.

Quando parte da jornada se encerra, no portão de Brandenburgo. Foto: Arquivo pessoal

Os últimos 4 km foram uma distorção de tempo-espaço. Intermináveis. Até que avistei o portão de Brandenburgo – lindo e tão cheio de História, ele agora fazia parte da minha. Cruzei a chegada em 3h45min16s. A primeira emoção foi alívio por aquilo ter terminado (o final foi realmente sofrido). E em seguida veio a alegria, o orgulho, e um tímido “eu sabia que você ia conseguir”, de mim para mim mesma. Porque a verdade é que tenho dentro de mim uma garra de que às vezes quase me esqueço – e que precisa de desafios como esse, de ir em busca de meu recorde pessoal pelas ruas míticas de Berlim, para ressurgir e se fortalecer. E é sempre muito bom encontrá-la!

Obrigada por dividirem comigo essa rica jornada.

PS: Enquanto eu corria, muitos quilômetros à minha frente o queniano Eliud Kipchoge voava, elegante, e estraçalhava o recorde mundial da maratona. É uma honra testemunhar um atleta como ele, com tanto talento, humildade e simpatia, entrar para a História. Kipchoge é GRANDE, em todos os sentidos dessa palavra!

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