Trapaça na corrida: por que amadores jogam sujo quando há tão pouco em jogo?

Por Duncan Craig e João Ortega, da Runner's World

trapaça na corrida
Ilustração: Fabrício Tavares

Não é de hoje que existe trapaça nos esportes, e na corrida não é diferente. Um dos casos mais recentes de trapaça na corrida aconteceu na edição de 2017 da São Silvestre, corrida de rua mais famosa do Brasil, que atraiu 30 mil corredores nessa edição. De 30 mil inscritos estima-se que cerca de 4.500 pessoas invadiram o percurso – os chamados “pipocas” –, o que foi uma vitória para a organização. Em 2016 foram 15 mil espertinhos. Além disso, chamou a atenção da imprensa nacional um caso de clonagem de números de peito. 12 atletas correram com a mesma inscrição. Isso mostra que a quantidade de pessoas que não pagaram a inscrição da prova foi maior que o estimado e que as fraudes estão se tornando mais criativas.

A triste realidade é que a trapaça entre amadores é um fenômeno cada vez mais comum em termos estatísticos e, especialmente, práticos. Vários relatórios de competições mostram resultados anormais, que requerem investigação; há um fluxo constante de transgressores de alto nível, e os fóruns e painéis sobre corrida sempre batem nessa tecla. Blogs e sites foram criados exclusivamente para flagrar, expor e desestimular essa curiosa subespécie.

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Trapaça na corrida

Tem gente que rouba no jogo para aparecer bem nas redes sociais, obter uma classificação geral bacana na prova ou até pegar um pódio e ter um tempo qualificatório para uma prova importante. Cortar caminho é a forma mais comum de trapaça. Há quem estude o percurso para passar em todos os tapetes de cronometragem e não ser pego. Também tem aqueles que pegam carona em uma moto ou carro até perto da linha de chegada, antes de desfrutar a desmerecida glória. Há, ainda, as “mulas” de números de peito: os que carregam dois ou mais números ao longo do percurso, registrando tempos falsos para amigos ou até clientes. E, claro, como no exemplo mais recente, os que “clonam” números de peito.

Para quem acompanha a discussão, algumas trapaças estão na ponta da língua: Jason Scotland-Thomson, personal trainer que correu a segunda metade da Maratona de Londres de 2014 mais rápido que Mo Farah; Rosie Ruiz, que foi a breve vencedora da Maratona de Boston de 1980, antes de descobrirem que ela só tinha corrido a milha final; Rob Sloan, do Sunderland Harriers, que foi acusado de pegar um ônibus de espectadores por volta do Km 32 na Maratona de Kielder, antes de voltar à competição e ficar com o 3° lugar.

E quem não se lembra de Natasha Argent, irmã de Towie star James? Aos 26 anos, ela correu a Maratona de Londres em 3h48; até que se soube que ela fez a segunda metade da prova em uma sequência mirabolante de quilômetros em menos de 2min30 cada e que não há nenhum registro de sua passagem em vários pontos de marcação de tempo. Os organizadores da competição pediram que ela explicasse as anormalidades. Natasha disse que havia tido uma crise de pânico e se perdera no percurso.

Um negócio a partir das trapaças

O analista de negócios norte-americano Derek Murphy está à frente do movimento que expõe uma série de amadores trapaceiros. Aposentado, ele agora dedica suas horas livres para flagrar e desestimular os “trapaceiros”, como ele os chama, através de seu site de investigação em maratonas. Derek ficou tão famoso que tem acordos informais com vários eventos no mundo todo. Seu modus operandi é simples: uma atenção incansável aos números. Quase tudo de que precisa está aí, segundo ele. Passagens de atletas em provas, estatísticas sobre ritmo, dados de treinos passados. Derek é cuidadoso, calmo e analítico.

“Tudo começou com um caso que descobri, de um corredor que encurtou o percurso em uma maratona qualificatória”, contou. “Isso me fez entrar em um mundo do qual eu ainda não consegui sair.” Ele não sabe ao certo se os corredores estão trapaceando mais atualmente ou se estão sendo flagrados com mais frequência. De qualquer forma, acredita que as trapaças estão ficando “mais criativas”. “É um jogo de gato e rato, e há uma certa emoção nisso, sem dúvida”, afirma. “Você avalia um corredor e não vê nada em seu histórico que sugira que ele seja capaz de ter conseguido o tempo que fez. Eu não posso provar isso sempre, mas quando consigo é um momento de muita euforia.”

trapaça na corrida
Foto: Shutterstock

Tecnologias aliadas

É bem complicado entender a disposição para trapacear em competições que oferecem pouca recompensa, pois vem ficando exponencialmente mais difícil burlar as regras nos últimos anos. Os competidores desonestos não só têm pessoas como Derek em sua cola como também as estatísticas estão em todo lugar, para qualquer detetive amador online avaliar: desde sites que registram resultados, como o Athlinks, que avalia o histórico de competições do corredor, até aplicativos como o Strava, que fornece o histórico de dados de treino.

Dependendo da competição, você também pode esperar encontrar tapetes de marcação de tempo que registram seus tempos em alguns intervalos ao longo da prova; comunicação por rádio via fiscais ou voluntários; e registros em vídeo da largada e da chegada.

E há, também, as evidências fotográficas. Grandes maratonas contam com muitos fotógrafos oficiais e um número ainda maior dos não oficiais (quem não possui um smartphone hoje?). Quando reunidas, as imagens possibilitam criar algo parecido a um filme de quadros estáticos de toda a prova de um corredor. Quando aparecem “buracos” nas fotografias, levantam-se suspeitas.

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Por que roubar no jogo?

“A pessoa comum escolhe correr por um simples motivo: quanto mais duro dá, mais ela melhora, esforçando-se até seu limite. As pessoas que trapaceiam em competições de amadores estão, claramente, zombando disso”, afirma Robert Johnson, cofundador do LetsRun, um site de corrida norte-americano que tem 1 milhão de usuários por mês.

Mas o que levaria os amadores a trapacearem?

Como muitos males do mundo moderno, o dedo está prontamente voltado para a mídia social: a corrida, que durante tanto tempo foi uma aventura particular e individual, agora é uma performance pública. As provas que fizemos, os tempos que conseguimos: essas são as medalhas de honra, mas também símbolos de aceitação para grupos sociais claramente definidos.

Para Roberta Palma, jornalista esportiva e corredora amadora, as redes sociais acabam prometendo um reconhecimento que apenas poucos conseguem alcançar. “Hoje qualquer pessoa que corre pensa em ser influencer, afinal as vantagens vendidas para o público em geral são muitas: inscrições gratuitas para as provas, tênis e acessórios de brinde, entre outras”, explica.

Na mesma linha de raciocínio, o educador físico e presidente da Associação de Treinadores de Corri- da (ATC) de São Paulo, Nelson Evêncio, acredita que há uma “ostentação do tempo”. Isso leva corredores a cortarem caminho ou, pior, usarem substâncias que melhoram o desempenho, o doping amador. “As próprias marcas de corrida, de dez anos para cá, estão usando amadores como modelo de pessoas que se superaram e fazem tempos excepcionais apesar de trabalharem. Isso, em certo ponto, incentivou as pessoas a agirem de forma errada, trapacearem, para terem destaque”, diz Nelson.

Vença a trapaça

Os organizadores de provas têm como pegar quem corta caminho: com o sistema de cronometragem, conseguem calcular o ritmo por quilômetro do corredor. Assim, eles veem se tal feito é mesmo viável. A praxe é investigar qualquer resultado anormal e pedir ao corredor que dê uma explicação. Se, ainda assim, eles não ficarem satisfeitos, pedem a devolução da medalha de finalista e o corredor é banido da prova.

Mas, enquanto no exterior os organizadores parecem fugir de polêmicas – “Esta não é uma questão sobre a qual realmente queremos dar informações. Não estamos interessados em fazer acusações publicamente”, afirma o diretor da Maratona de Londres, Hugh Brasher –, aqui no Brasil eles parecem cada vez mais dispostos a punir e divulgar o problema.

A Yescom, empresa que organiza a Corrida de São Silvestre, tomou uma série de medidas para diminuir o número de invasões em 2017. A área de largada e dispersão foi cercada, câmeras instaladas nos pontos de hidratação e aumento da fiscalização. Além disso, houve uma campanha de conscientização através das redes sociais antes da corrida. “A Yescom vem adotando medidas para coibir pipocas desde a Meia Maratona de São Paulo do ano passado. Tem feito isso durante o ano e em todas as suas provas e conseguido uma boa redução nas invasões”, afirmou Thadeus Kassabian, diretor da Yescom.

Logística por trás das provas

Tais medidas – principalmente as preventivas – são importantes para manter a qualidade das provas e não afastar o público das corridas de rua. “O caminho é a conscientização”, acredita Nelson. O corredor precisa entender que, apesar de a rua ser pública, ela é concedida à organização por uma parceria que possui custos; além de ser relevante à sociedade como um todo. “Costumo dar o exemplo da feira livre e da banana. A feira livre também acontece na rua, que é pública. A prefeitura dá uma concessão para que pequenos empresários disponibilizem seus serviços e produtos para a comunidade, naquela rua, naquele dia, por algumas horas. Você não chega na feira livre, pega uma banana e sai sem pagar porque a rua pública, chega?”, questiona Roberta.

Para Thadeus, com a fraude, quem sai prejudicado são os demais atletas. “Quem perde é o corredor oficialmente inscrito. Pois, por exemplo, os serviços disponíveis, como hidratação, podem acabar”, diz, lembrando o caso da São Silvestre de 2016. Na ocasião, copos d’água se esgotaram. Roberta vai ainda mais além: “Prejudica tudo. Prejudica a sociedade, não só o mundo da corrida”.

Corredores unidos

A organizadora britânica The Great Run Company é responsável pela maior meia maratona do mundo, a Great North Run, na Inglaterra. O número de finalistas de suas provas ultrapassa 250 mil por ano. Nessa corrida não se confia apenas em estatística para identificar quem trapaceia. Cada vez mais, a empresa percebe que suas competições são “autovigiadas” por outros corredores que contatam os organizadores para sinalizar comportamentos suspeitos ou abertamente desonestos.

Para David Hart, diretor de comunicação, a trapaça é uma preocupação que sempre existiu: “Eu estou nessa função há um bom tempo e vejo trapaças surgirem regularmente. Há alguns métodos e vários transgressores em série aos quais ficamos atentos. Eu fico decepcionado, acima de tudo, mas consigo entender a raiva dos outros corredores. Eles se veem passados para trás e tirados da posição em que deveriam estar; mesmo que seja a 3.800a em vez da 3.799a”.

Revertendo um histórico nada glorioso

Entre os corredores de elite, a Comrades, na África do Sul, a mais antiga ultramaratona do mundo, é detentora do nada invejável recorde da possivelmente mais elaborada fraude de competição. O finalista da 9a posição, Sergio Motsoeneng, trocou o número de peito com seu irmão gêmeo, Fika, na metade da prova, em 1999. Eles foram flagrados quando surgiram fotografias de Sergio com o relógio no outro braço e com o mirabolante aparecimento de uma cicatriz em sua canela esquerda.

Sessenta e seis corredores foram flagrados trapaceando na histórica competição de 90 km no ano passado. Segundo o diretor da prova, Rowyn James, esse número “está definitivamente aumentando”. Ele não fica surpreso. “A Comrades é uma conquista muito respeitada em toda a África do Sul. Às vezes somos contatados por agências de recruta- mento. Elas verificam se os candidatos de fato participaram da Comrades, conforme declararam. E nem sempre isso é verdade.”

A Comrades tem seis pontos, com tapetes de marcação de tempo. Mas para evitar que os corredores enganem a organização da prova, há uma medida adicional adotada para eliminar os trapaceiros. “Nós escondemos dois tapetes todo ano”, conta James. “Temos que adotar medidas palpáveis para flagar e desestimular a trapaça, pois isso pode fugir do controle. Se não se faz nada, os corredores começam a achar que é fácil trapacear no evento.”

Sempre de olho

“É muito mais fácil e mais aceitável se gabar das coisas hoje. Eu acho que isso se infiltrou na corrida também. Acredito que as pessoas sempre trapacearam, mas simplesmente há mais incentivos hoje”, diz Robert Johnson. Quanto à questão da trapaça, o fórum parece uma versão menos restrita que Derek; que identifica e expulsa os trapaceiros sem remorso. O slogan do site é “onde seus sonhos se transformam em realidade”. Entretanto, para qualquer pessoa suspeita de trapacear, é mais um pesadelo.

Pergunte ao londrino Rob Young. Em 2016, o autointitulado Marathon Man estava tentando quebrar o recorde de travessia a pé mais rápida dos Estados Unidos. Só que sua quilometragem e ritmos diários nada realistas rapidamente chamaram a atenção do LetsRun e o escândalo estourou. Eventualmente, seu patrocinador, Skins, pediu uma investigação independente. Alguns dos dados do GPS enviados mostraram que sua cadência sugeria passadas de cerca de 50 metros. Qual foi a única conclusão? Que ele passou longos períodos se deslocando em seu veículo de apoio.

Desde então, Rob praticamente desapareceu da vida pública, e foi impossível contatá-lo para que comentasse o assunto. Ele escreveu em seu site: “Eu respeito a conclusão dos investigadores… admito que cometi erros com o gerenciamento e registro de dados, mas eu nunca trapaceei”.

Qual é o limite da busca pelas trapaças?

Entretanto, quando amadores trapaceiam, isso não seria um crime sem vítimas? É realmente pior do que se gabar do número de cervejas que você bebeu na noite anterior? Conforme alguém postou no fórum do LetsRun: “Eu me pergunto: alguém realmente se importa, de verdade? As pessoas trapaceiam no trabalho, em jogos e em competições”. Derek discordaria, mas ele sabe que nem todo mundo gosta dele. A maioria dos seus leitores parece admirar sua assiduidade. Mas também tem muitos que veem isso como algo inadequado e até voltado a interesses próprios. Esse é um dos comentários online sobre o assunto: “Em muitos sentidos, você não seria melhor que uma pessoa que trapaceia. Na verdade você é pior porque tenta lucrar com isso” [Derek pede contribuições para cobrir suas despesas].

Scott Kummer, advogado em Chicago (EUA), é um forte apoiador dessa visão. “Podcaster” com um programa de corrida chamado “Ten Junk Miles”, ele vê a tendência à humilhação pública como algo que remete ao que acontecia na época dos castigos físicos. Ele fica perturbado com a devoção que as pessoas têm às redes sociais para identificar supostos transgressores, em vez de recorrer aos diretores das provas ou às pessoas em si. “A noção de que vamos expor essas pessoas nas redes sociais, que será vista por milhões de pessoas, é assustadora”, afirma ele. “Não estamos falando de Paula Radcliffe ou alguém assim; elas são figuras públicas que devem ter que lidar com esse tipo de coisa. Em geral, trata-se de um maratonista cujo tempo é de 4h30 e que é um contador ou algo assim.”

Inocentes marcados

Ele ficou ainda mais convicto de sua visão sobre o tema com o infortúnio de uma amiga, Meghan Kennihan, de 35 anos. Ela participou de uma prova de 50 km perto de sua casa. Este ano, o percurso foi alterado e ela acabou pegando um atalho de forma não intencional. Não foi muito: mais tarde, o Strava mostrou que foram cerca de 240 metros.

Mas a mulher que ela venceu (com uma margem) e acabou ficando em 3o lugar soube disso e foi direto ao grupo de 3.000 pessoas do Facebook do qual as duas fazem parte. “Foi a coisa mais ridícula do mundo”, lembra Meghan. “Ela postava coisas sobre mim com #cortatrajeto e #trapaceira. Eu a confrontei e perguntei por que ela não veio falar diretamente comigo. A situação foi muito ruim, pois sou personal trainer e técnica de corri- da. Muitas pessoas me encontram através desses grupos. Isso poderia afetar meu ganha-pão.”

Meghan devolveu a placa e a medalha que ganhou e criou um blog em que explicou o erro (posteriormente, o diretor da competição a absolveu e admitiu que o fiscal que deveria estar orientando os corredores tinha ido ao toalete). Mas, assim como uma tatuagem indesejada, foi difícil se livrar da pegada digital, especialmente da que tinha #trapaça.

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