Você tem hipermobilidade?

A flexibilidade em excesso pode aumentar o risco de lesões e até prejudicar a performance

Ilustração: Marcus Penna.

Por Georgia Scarr

Basta começar a correr e a palavra flexibilidade vira uma espécie de mantra. Corredores ouvem o tempo todo sobre a necessidade de fazer alongamento regularmente para evitar tensão muscular. E de fato alongar é benéfico. Mas o que pouca gente sabe é que, quando o assunto é flexibilidade, não vale a máxima do “quanto mais, melhor”. Hipermobilidade pode significar problemas para pernas, pés e para quem tem a meta de correr longas distâncias. Pior, ela pode causar lesões crônicas se não for tratada. E qual é o limite entre o bom e o ruim? Quando a flexibilidade é considerada hipermobilidade? Aprenda a reconhecer se o problema afeta você e saiba o que é preciso fazer a respeito.

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Hiper o quê?

Hipermobilidade articular é uma condição em que as articulações são mais flexíveis do que deveriam, ou seja, elas se estendem além do que seria a amplitude normal de movimento. A hipermobilidade pode afetar as 360 articulações do corpo ou ficar limitada a apenas algumas, como joelhos, tornozelos e quadris. E, acredite, você não precisa ser um contorcionista para ser afetado. O simples fato de os seus joelhos se dobrarem levemente para trás quando você fica de pé pode ser um sintoma. Esse excesso de flexibilidade tende a passar despercebido pela maior parte das pessoas, mesmo com a estimativa da Hypermobility Syndromes Association (Associação da Síndrome da Hipermobilidade) de que 20% a 30% da população é afetada pelo problema. No entanto, com o impacto físico regular da corrida e o passar do tempo, o problema pode vir à tona.

Na junção de um osso com uma articulação, as extremidades de ambos são envoltas por uma cápsula fibrosa cheia de fluido (responsável por aquele alívio ou aflição que você sente quando estala alguma articulação) e presas por ligamentos, que previnem as articulações de se deslocarem ou se moverem mais do que devem. Os músculos ao redor da articulação estão conectados aos ossos por tendões, para que seja possível se esticar, torcer e correr. Nas pessoas afetadas pela hipermobilidade, o colágeno nesses tecidos tem qualidade inferior e é menos resistente à tensão, o que faz as articulações se moverem além do ideal.

O que isso significa para você, como corredor? Com o impacto de duas a quatro vezes maior que seu peso cada vez que seu pé toca o chão, articulações hipermóveis ficam sob extrema pressão, com a força que vem do solo, empurrando e puxando as fibras musculares mais do que elas podem suportar. Você provavelmente não irá notar isso no momento de cada impacto, mas em uma corrida mais longa pode ser um problema. “Ao longo de anos, o corredor pode ter uma lesão recorrente ou uma série de sintomas leves, aparentemente não relacionados”, diz a fisioterapeuta inglesa Justine Waloch. “Sem a recuperação adequada, eles podem se apresentar em qualquer parte do corpo onde haja tensão ou movimento em excesso. Outro sintoma alarmante é sentir os músculos constantemente cansados e não conseguir mais acompanhar um treino que até ali fazia parte da sua rotina.”

PONTOS CRÍTICOS

Se suas articulações estiverem muito flexíveis, os músculos ao redor terão que trabalhar mais para estabilizá- las durante o exercício, tornando aquelas com hipermobilidade mais propensas a dores articulares e musculares depois da corrida. “Se os músculos locais (que oferecem estabilidade, como os ao redor do joelho) não estão atuando corretamente, os músculos globais (que comandam o movimento, como os do quadril) provavelmente vão se tornar rígidos, porque estarão trabalhando em excesso”, diz o fisioterapeuta britânico Jonathan Grayson.

Ele diz que corredores com hipermobilidade são propensos a ter problemas em várias articulações, seja simplesmente por conta da sua hiperflexibilidade ou pela reação em cadeia causada por uma articulação frágil, que leva todas as outras a saírem da linha. O resultado? Uma série de possíveis lesões resultantes do excesso de esforço, como síndrome da banda iliotibial, fascite plantar e síndrome da dor patelofemoral (joelho de corredor). “Os sintomas não são exclusividade de corredores com hipermobilidade, mas neles as lesões podem ser mais severas e responder com mais dificuldade a tratamentos convencionais”, diz Justine.

Quem apresenta hipermobilidade também tem níveis reduzidos de propriocepção (a habilidade do corpo de perceber a posição e o movimento das articulações), diz Roger Wolman, consultor de reumatologia, esportes e medicina do exercício do Royal National Orthopaedic Hospital, no Reino Unido. Isso pode predispor o corredor a se desequilibrar e cair.

No entanto, ser hiperflexível não necessariamente significa uma vida cheia de lesões. “Isso não impossibilita a corrida, só é preciso trabalhar um pouco mais de força, controle e propriocepção”, diz Sarah Green, corredora e fisioterapeuta inglesa. Para aqueles que não têm hipermobilidade, não há necessidade de parar com os alongamentos, cancelar a ioga ou jogar fora o rolo de espuma por medo de se tornar muito flexível. Não é uma condição que a gente desenvolve.

Também é importante ressaltar que ter hipermobilidade não significa que você não deva se alongar. “A pessoa hiperflexível também pode ter tensões musculares, como qualquer um”, explica Jonathan. Nesse caso, alongar para aliviar a tensão após o treino não vai causar nenhum dano, desde que esse alongamento não cause dor. Entretanto, tenha o cuidado de não exagerar porque, para quem tem hipermobilidade, alongar demais pode ser prejudicial. Um estudo publicado no Clinical Journal of Sports Medicine descobriu que indivíduos com hipermobilidade no joelho eram até quatro vezes mais propensos a desenvolver uma lesão por alongar em excesso a articulação.

Assim como muitas características físicas, a hipermobilidade se apresenta em diferentes formas – alguns corredores irão experimentá-la em uma ou duas articulações, enquanto outros a terão por todo o corpo. Ela também pode ser sintoma de problemas mais sérios, como a síndrome da hipermobilidade articular (SHA). “Há uma diferença entre ter apenas alguma hipermobilidade articular e ter a SHA”, explica Jonathan. “A SHA é uma desordem hereditária do tecido con- juntivo, que traz a hipermobilidade associada a sintomas como dor crônica, fadiga, problemas digestivos e baixa densidade óssea.” Se você desconfia que pode ter a SHA com base nos sintomas aqui descritos, procure a orientação de um clínico geral, que poderá encaminhá-lo a um reumatologista.

A ABORDAGEM FLEXÍVEL

Não é possível curar a hipermobilidade, mas é possível administrá-la e minimizar os riscos de lesão, melhorando a força e a execução da corrida. Se o problema maior for lesões frequentes e demora na recuperação, vale a pena verificar o que pode estar acontecendo. Você mesmo pode fazer um teste usando a escala Beighton (veja o quadro “Você tem hipermobilidade?”), um bom indicador da hipermobilidade em algumas articulações. Mas se você quiser uma resposta definitiva, consulte um fisioterapeuta, que será capaz de oferecer um diagnóstico mais preciso e elaborado, com base nos seus sintomas e histórico de lesões.

Se você desconfia que é hiperflexível e até agora não teve sintomas, como buscar ajuda? “Se existe a desconfiança da hipermobilidade, mas o indivíduo não enfrenta nenhum problema, não há necessidade de consultar um fisioterapeuta”, diz Jonathan. “Mas existe o risco de você estar desenvolvendo desequilíbrios sutis, que podem se tornar um problema. Por isso, se você acha importante evitar lesões e possíveis interrupções no seu treino, uma avaliação preventiva pode ser benéfica.”

Detectar problemas potenciais antes que eles possam impedi-lo de treinar é sempre uma boa ideia. “Prevenir não vai causar nenhum dano, sobretudo se você é um corredor iniciante”, conta Jonathan. “Eu aconselharia uma avaliação preventiva para qualquer pessoa, não apenas para quem é hiperflexível.” Isso inclui consultar um fisioterapeuta esportivo, que analisará seu quadro para detectar onde estão seus pontos fracos e vai orientar sobre como começar a equilibrá-los.

Ilustrações: Rodrigo Damati.

Como medida preventiva, Roger recomenda pilates, que vai ajudar a corrigir os desequilíbrios musculares e melhorar a estabilidade do core. Você também pode ajudar a eliminar lesões específicas e melhorar a força usando nosso guia rápido de exercícios (veja abaixo).

Outra coisa importante de se prestar atenção é a maneira como você corre. Como já era de se esperar, o grande movimento articular dos corredores hiperflexíveis normalmente leva à pronação acentuada (quando o movimento dos pés se volta para dentro), o que causa uma sobrecarga adicional nos músculos e está relacionada a lesões como canelite, fascite plantar e joelho de corredor. Faça uma análise da sua corrida e tipo de pisada em uma clínica esportiva e avalie o uso de um tênis apropriado à sua pisada. “Podem ser necessários recursos de ortopedia e uma adaptação do paciente ao tênis”, explica Jonathan. “Também é preciso estar atendo para que os tênis não fiquem muito velhos. Tenha sempre dois pares à disposição.”

Alterar a maneira como seu pé toca o solo também pode fazer diferença. “Se pisar com o calcanhar está te trazendo problemas, experimente pisar com a parte da frente (antepé)”, aconselha Jonathan. “Outra dica é encurtar a passada, o que pode ajudar a reduzir a fadiga e a tensão.”

Ilustrações: Rodrigo Damati.

Além disso, melhorar a propriocepção pode aumentar a estabilidade, reduzindo potencialmente o risco de desequilíbrios e quedas. Jonathan recomenda se equilibrar em uma perna com os olhos fechados. Faça isso até três vezes ao dia, em um lugar seguro — o alto de uma escada não é o lugar ideal! Tente ficar por 30 segundos na posição, sem pressionar os dedos ou travar os joelhos. Você saberá que a propriocepção está melhorando conforme conseguir ficar por mais tempo na posição sem se desequilibrar. Os resultados de exercícios como esse podem ser excelentes. Uma pesquisa publicada na Rheumatology International indicou uma “melhora significativa na propriocepção” em indivíduos que adotaram exercícios terapêuticos, o que levou à diminuição da dor e a uma melhora funcional.

Quem tem hipermobilidade precisa estar mais atento a si mesmo. Não existe uma solução única para todos os casos. “Leve o tempo necessário para escutar seu corpo e perceber como ele responde e se recupera de cada treino”, diz Jonathan. “Talvez você tenha que reduzir a distância das corridas, ter períodos de descanso mais longos e dar mais atenção ao aquecimento e desaquecimento.” Resumindo, seja paciente consigo, ouça seu corpo e você ainda poderá alcançar todas as sua metas na corrida.

ESTUDO DE CASO

Thomas Ling, 23 anos, jornalista digital

“Eu praticava corrida cross-country quando, há alguns anos, desloquei a patela simplesmente sentando no banco de um ônibus. Meus joelhos me deixaram na mão durante a corrida outras duas vezes depois disso e um médico percebeu que minhas rótulas eram suscetíveis ao deslocamento por conta da hipermobilidade. Algumas pessoas acham que ter hipermobilidade quer dizer estar livre de dores articulares, mas significa mais fragilidade nos membros inferiores.

Por ter hipermobilidade, eu me sinto frustado por ter que trabalhar os músculos do joelho para manter a articulação no lugar e, depois de quatro visitas ao pronto-socorro (e quatro experiências dolorosas, chacoalhando em uma ambulância), tenho medo de exercitar minhas articulações demais e acabar causando mais lesões.

Estou me recuperando lentamente. Atualmente, sinto-me confortável em atividades como a bicicleta e, depois de muitas sessões de fisioterapia, consigo fazer pequenos tiros. Mas assim que ganhar mais força nos membros inferiores quero incorporar novamente a corrida à minha vida.”